sexta-feira, 10 de setembro de 2010

The Raven Song - Capítulo 3

Capítulo III: Quando os Demônios...

Parte 1: ...Vendem Suas Almas

Moskov saiu do elevador batendo os saltos no chão com ruidosos toc-toc e ao alcançar a “Área Especial” (onde costumava-se prender os prisioneiros homicidas e os esquizofrênicos) passou seu cartão de identificação na porta, entrando definitivamente na Zona Proibida.

Esse olhar... quantas vezes já não o vi? Aquele olhar que diz o quanto você é um animal, um lixo, um verme... Sim, eu sei que sou tudo isso, Tenente, mas o que posso fazer? É a minha natureza morder quando você menos espera. É a minha natureza correr atrás desse olhar, porque é ele quem me alimenta...

— O Sr. Morrys está bem? — questionou nervosamente para o guarda que tomava conta da sala acolchoada feita exclusivamente para os prisioneiros que não tinham um parafuso muito preso... Se é que conseguem entender, senhores.

— Está vivo — foi a resposta pouco animadora que recebeu. O rapaz de cabelos curtos e claros parecia nervoso em ter de ficar ali.

— Abra a porta para mim, meu jovem.

Seu asco apenas comprova o meu sucesso em ser um monstro.

Ele me satisfaz profundamente.

— O que?! Mas, Tenente...

— Nada de “mas”! Abra logo essa porta ou vou mandá-lo limpar as latrinas do banheiro masculino por um mês e será com sua escova de dente!

O guarda, mais nervoso do que nunca, digitou a senha que abria o “quarto-dos-malucos” e empurrou a porta para que Moskov pudesse ver seu mais novo e mal-comportado prisioneiro.

Um vidro à prova de balas separava a entrada da verdadeira porta que dava para o quarto acolchoado e o guarda também tratou de que este subisse para que a Tenente pudesse passar.

— A senhora tem mesmo certeza disso? — indagou com suor escorrendo pelo rosto.

Você tem medo de mim. Isso é agradável.

Você me odeia. Isso é um fato.

E apenas se odeia com real convicção nos outros, aquilo que queremos esconder em nós mesmos...

Ela simplesmente assentiu e a porta da sala acolchoada foi aberta.

Sentado no canto esquerdo com uma expressão de sublime serenidade, estava Raven.

Alguns guardas realmente corajosos haviam conseguido colocar-lhe a camisa-de-força, mas ele logo arrebentara a lona e transformara-a em um casaco estranho, amarelado, com fivelas quebradas balançando pelos lados. Quando voltou seu rosto quase lupino para a mulher, ela percebeu (com o estômago revirando-se e o vômito pedindo passagem por sua garganta) que a boca e o queixo dele estavam sujos de sangue e que de seus dentes (exibidos no mesmo sorriso debochado, sarcástico, que ele dera ainda na sala) pendiam finos pedaços de carne, assim como mais sangue ainda.

Engane os outros, Tenente. Coloque sua máscara, isso mesmo. Não faz diferença pra mim. Eu sei o que você é e você também sabe.

Você é tão suja quanto eu.

Acha que não reparei nas marcas roxas no seu pescoço, vagabunda? Ou nos seus olhares para aquele fardado cópia do “Scarface”?

Suas tentativas de esconder a ambos foram falhas... Ou será que não seria seu desejo que todos reparassem que você anda empinando o rabo para um dos seus homens?

, é mesmo uma piranha...

Quando se faz um trato com um Nevasca, Tenente Moskov — começou com um tom que indicava o princípio de uma risada (e era muito melhor que ele apenas ficasse na vontade, pois se realmente se atrevesse a rir, ela seria capaz de dar-lhe um tiro no meio da testa) — você automaticamente faz um trato também com o próprio Diabo. É melhor ir se preparando, pois isso é apenas o começo.

— Feche essa porta. — a mulher ordenou para o guarda. E ao vê-lo hesitar, perdeu o controle. — Feche logo essa porta, caralho!

Raven erguera-se e agora caminhava lentamente na sua direção. A porta tornou a mover-se automaticamente para impedir a passagem dele, mas o Nevasca colocou o pé antes que ela o trancasse lá dentro.

Você não pode fugir de si mesma.

E eu sou a verdade que vive dentro de ti.

Por isso... corra enquanto pode. Pois eu vou te pegar um dia.

Moskov tinha noção de quanta força era precisa para manter aquela porta aberta e quando ele começou a afastá-la, tentando sair, ela correu com o guarda em seus calcanhares, fechando a parede de vidro blindado que separava a porta de saída da porta da sala acolchoada.

Sem parecer abalado, Raven bateu com ambos os punhos no vidro e um som crocante pode ser ouvido quando a superfície rachou um pouco na parte que ele atingira. Talvez ficasse batendo ali o dia inteiro sem conseguir fugir, mas algo dizia a Tenente que ele não pretendia fazer isso.

O sorriso sangrento só queria dizer uma última coisa para ela:

Vou te fazer se arrepender de ter feito um trato comigo, puta.

E como vou...

Parte 2: ...Amam

Giovanni estava um pouco melhor com os curativos que a enfermeira fizera. Entretanto, eles não eram como os que Raven fazia. Os que Raven fazia quase sempre não duravam nem três dias, pois havia alguma coisa nas mãos do homem que era... mágica.

— Sr. Puente vamos precisar muito da sua ajuda.

Ele ergueu os olhos confuso para a Tenente Moskov — esta carregando uma expressão séria no semblante.

— Por quê?

— Porque seu amigo, o Sr. Raven, acabou de aleijar um dos meus guardas. E não estou falando de um braço ou de uma perna...

— Então onde foi?

— Digamos que seu amiguinho fez uma vasectomia de forma invejável.

— Raven não ataca sem que alguém o provoque. — retorquiu o espanhol

Moskov pensou na fita da câmera instalada no elevador. O guarda havia passado a mão na bunda do Nevasca e perguntado de forma sacana se não podia divertir-se um pouco com ele, afinal de contas “a bichinha chorona com quem ele devia trepar, se desmaiava com um choquezinho de nada, na certa não lhe dava o prazer que ele merecia, não era macho o suficiente”.

— Além do mais, aquele cara me machucou. E isso Raven não aceita.

— Vocês por acaso tem alguma coisa? Algum relacionamento sexual?

— Não!

— Olha, não adianta tentar mentir pra mim. Eu vou descobrir a verdade sobre a relação de vocês.

— Eu não estou mentindo.

— Acha que não reparo a forma como ele olha pra você?!

— E que forma é essa?

— Como se... como se fosse capaz de fazer qualquer coisa por você. Nem mesmo meu ex-marido me olhava daquela forma.

— E daí?

— Daí que vocês são homens, pelo amor de Deus! Um homem olhar assim pra outro...

Um sorriso pequeno surgiu nos lábios do rapaz.

— Então acha que só porque somos muito ligados isso nos obriga a manter uma relação íntima?

— Acho! — ela aparentava muita firmeza no que dizia.

— Então... acha que somos gays?

A Tenente abriu a boca para responder, mas...

Olhando bem para aquele sujeito, ele não parecia nem um pouco efeminado. Haviam cinco cicatrizes enormes em seu rosto, uma delas repuxava o canto de sua boca num sorriso vazio ao mesmo tempo em que encovava sua bochecha esquerda. Queimaduras horríveis começavam no lado direito de seu rosto bem no queixo e acabavam no couro cabeludo, fazendo os fios rarearem ali. Com ele sem camisa, Moskov também reparava no peito coberto de pelos e mais cicatrizes/queimaduras.

Aquele sujeito não parecia ser gay. Quer dizer, todos os gays que vira até hoje pareciam um bando de mulherzinhas, além de serem bem egocêntricos.

Ou seja, ela poderia considerar que Raven...

Se bem que olhando bem para ele também... Raven só parecia frágil próximo do espanhol. Quando o viu sentado na sala acolchoada, sozinho, Moskov notou o quanto era másculo com aqueles ombros largos e os olhos claros, investigadores. O queixo pontudo e o nariz nobre complementavam o rosto conferindo-lhe uma aura de mistério. Na verdade, ousava até mesmo a dizer que a presença dele fizera um calor molhado surgir no meio de suas pernas...

“Que raios estou pensando?”, ela questionou a si mesma, suando frio. Então lembrou do relatório que recebera do laboratório dizendo que determinados fatores nos Nevascas poderiam causar... “reações estranhas” nas pessoas comuns.

— Eu não sei. As aparências enganam.

— Só temos um ao outro. Desde sempre. Meus pais morreram muito cedo. Raven me salvou da morte, ele me deu uma nova vida... Você não tem ideia do quanto ele fez por mim...

Então, acabou sendo levado na onda das memórias, aquelas criaturinhas perigosas e de dedos hábeis que agarram nossas mentes e nos transportam para lugares que às vezes gostaríamos de esquecer.

/////

Ele, Giovanni, tinha 11 anos.

A vida não estava sendo muito generosa, dando-lhe apenas um corpo magro e minúsculo, muito diferente do que viria a adquirir na chegada dos famosos dezesseis...

Mas, por enquanto, era apenas um moleque baixinho, raquítico. Saúde frágil. Enfim...

Tanto Raven quando o garoto estavam parados próximos de uma barraca de frutas. Com um sinal de cabeça do mais velho, ele passou a encher uma sacola de papel rapidamente com maçãs e laranjas. Tudo teria dado certo se... um cão imenso não tivesse aparecido rosnando para ele.

No início, até tentou acalmar o bicho, mas era impossível. Achando que ia ter um braço arrancado ou coisa parecida, ele se pôs a correr desesperadamente — e ainda bem que pelo menos sua estrutura corporal lhe permitia correr feito um desvairado, porque nem gostaria de imaginar o que aquela boca cheia de dentes teria feito com seu traseiro. Não encontrando o traseiro, porém, o cão não desistiu e arrebentou a sacola, fazendo seu conteúdo rolar pelo chão, atraindo um grupo de mortos de fome que atirou-se ali, brigando pelas frutas como animais selvagens.

Recostando-se numa parede de tijolos depois de fugir ele inclinou a cabeça para trás e respirou o ar em golfadas. Saltou quando uma mão pousou em seu ombro, mas era apenas Raven, o ar taciturno de sempre e a roupa de violinista de rua, puída, ainda assim perfeitamente ajeitada, como se ele não tivesse corrido atrás do garoto e sim caminhado.

— Desculpe, Raven! — sentia-se imensamente envergonhado por não ter tido capacidade para roubar as frutas que serviriam de jantar para ambos.

O mais velho simplesmente suspirou e tirou duas peras de dentro do paletó negro e remendado que usava. Eles as jogou para o menino e apanhou o estojo com o violino no chão, começando a caminhar encurvado, uma postura típica que ainda lhe renderia boas dores quando envelhecesse.

— Vamos logo antes que os guardas apareçam.

— Você não vai comer, Rae... Raven? — corou mais ainda, percebendo que o chamaria pelo bendito apelido. E isso seria duplamente vergonhoso, pois desde que entrara no período da pré-adolescência não conseguia pronunciar aquela palavrinha infantil, acreditando que ela... Melhor seria não pensar naquele assunto agora... Raven poderia “ler sua mente”.

— Não. Você está em fase de crescimento. Precisa se alimentar.

— Só vou poder me alimentar se tiver você aqui, mas se morrer de fome como isso vai acontecer?

— Parece que alguém anda querendo bancar o espertinho pra cima de mim, não é?

— Eu não...

— Eu sou o mais velho então dou as cartas por aqui, garoto. E se eu digo que você vai comer tudo isso, então você vai comer tudo isso! Entendeu?

— Sim, Raven. — baixou a cabeça, sabendo que jamais seria capaz de desobedecê-lo.

Os dois caminhavam em silêncio até Raven passar o braço em torno dos ombros do menino que era vários centímetros mais baixo que ele.

Se você comer tudo vou te ensinar aquelas técnicas de luta.

— Jura mesmo?! — os olhos negros (e que o perturbavam profundamente) brilharam e um pequeno sorriso surgiu nos lábios finos e rachados pelo frio do rapaz mais velho.

Claro que sim... Mas só se comer tudo...

//////

— Não tente me distrair com suas histórias! — a mulher apontou o dedo em seu rosto. — Você vai me falar o que eu quero ouvir nem que seja na marra, senhor!

— E o que você quer ouvir?!

— Quais são as fraquezas dele? Do que ele tem mais medo? Onde ele se “machuca” caso alguém o “cutuque”?!

— Raven não tem fraquezas visíveis. Ele não teme a dor ou o sofrimento... Apenas uma coisa o torna mortal como qualquer outro.

— E o que é? Alguma substância específica? Algum trauma? Algum... abuso?

Os olhos de Giovanni tornaram a vagar; era fácil que tal ocorresse por conta do déficit de atenção...

/////

— Quem é o garoto? — perguntou o homem com a mão pousada sobre a pança monstruosamente grande. Quando ele ergueu o braço para apanhar uma caneca de cerveja oferecida pela garçonete usando um short minúsculo enfiado na bunda, Giovanni conteve-se para não vomitar diante da imagem das estrias esbranquiçadas em sua carne flácida.

Ninguém da sua conta — foi a resposta ríspida de Raven. — Onde está o dinheiro?

O gorducho estalou os dedos e alguém estendeu-lhe um maço razoavelmente grande com notas de cem. Ele passou as notas na frente do Nevasca e este agarrou-as, contando minuciosamente.

Pra um começo até que está bom. Quero o dobro disso quando terminar.

— Acho que você cobra bem caro pra fazer esse... “serviço”.

Eu não trabalho com isso... Não gosto de gente mandando em mim, mas alguém precisa trabalhar. — os olhos verdes pousaram em Giovanni e ele tirou algumas moedas do bolso do colete, passando-as para as mãos do garoto de 14 anos. — Vai comprar umas balas enquanto eu resolvo isso.

Ele estremeceu. Não queria se afastar do mais velho. Aquele lugar cheirava a drogas e prostituição, como ele poderia ficar sozinho? E se alguém tentasse alguma coisa? Mesmo querendo não admitir, ele jamais conseguiria se defender por conta própria... Só estaria seguro perto de Raven!

— Mas...

Está tudo bem, Vanni. Eu e o Sr. Gonzalez temos assuntos de adulto para tratar... Isso vai ser bem chato pra você, vá se divertir um pouco; algumas meninas estão louquinhas pra ficar contigo... Mas não vá deixar nenhuma arrancar suas calças, hein moleque?!

O garoto assentiu, o punhado de moedas sendo apertado firmemente por seus dedos desajeitados. Não pretendia, no entanto, perder aqueles dois de vista.

Por quê?

Bem, digamos que jamais Raven o tivesse chamado de “Vanni”. Nem mesmo nos momentos em que ele acordava gritando por conta dos pesadelos que ressuscitavam seu passado do caixão anônimo no qual fora enterrado, o mais velho o chamara daquela forma.

Recostou-se no balcão do bar observando o homem alto e pálido parado diante da mesa, aparentemente conversando com o cara obeso. Então, o sujeito levantou da cadeira, cambaleante, contornando a mesa com extrema dificuldade por conta de sua composição física semelhante a de uma bola de boliche. Percebeu, sombrio, que eles moviam-se na direção das escadas de degraus que rangiam violentamente, subindo para onde ficavam os quartos daquela casa de massagem barata.

Sem hesitar, correu na direção deles, passando por garotas que sentavam na cara de homens bêbados e uma banda de leprosos cantarolando alguma canção dos Rolling Stones. Ironicamente, era “Don’t Stop”.

Quando chegou no topo da escada, parou e virou-se, vislumbrando uma bunda gorda sumir no final do corredor. Correndo, o jovem parou, ofegando diante da porta que fechava-se na sua cara apaticamente.

Raven dissera mais cedo que eles iriam até ali para conseguir dinheiro suficiente para tratar sua doença. Uma doença estranha, mas que vinha proliferando-se como uma praga nos últimos meses, que os médicos haviam, ironicamente, apelidado de “A Morte Rubra”. Ela o fazia por vezes dobrar-se sobre o próprio corpo, tossindo com tanta violência que o sangue saía, maldito... rubro...

Giovanni já não era mais tão ignorante quanto ao que o mais velho fazia. Roubar frutas na feira não era o pior crime que ele já cometera. Raven já matara pessoas... Antes mesmo de matar os mendigos que destruíram sua família ele já havia matado incontáveis vezes...

E era exatamente isso o que ele ia fazer. Na certa, o gorducho o contratara para eliminar alguém e ambos discutiriam isso no quarto, onde nenhum policial disfarçado de ébrio poderia ouvir. Mais uma vez, Raven estava indo contra a lei apenas para salvá-lo.

Sentando no chão, o garoto resolveu esperar, mesmo que depois levasse uma bronca. Durante dez minutos ficou ali e de vez em quando ouvia sons abafados, como se alguém estivesse batendo com um socador num travesseiro, na certa vindo do quarto em frente. Quando tudo ficou em silêncio, o gordo abriu a porta abruptamente, saindo de dentro do quarto com um sorriso na cara. Apesar de ter esbarrado nele, o homem não o notou: Aparentava mais preocupação em fechar o zíper da calça do que dar-lhe atenção.

Hesitante, o garoto enfiou a cabeça pela fresta da porta, avistando Raven sentado na cama. Ao aproximar-se, notou algo errado...

As roupas dele estavam espalhadas pelo chão.

Por que Raven tiraria a roupa na frente daquele cara?

O rapaz levantou da cama, o lençol em torno da cintura. O lençol estava manchado de sangue.

Por que diabos o lençol estava manchado de sangue?!?

— Raven...? — nesse instante, jurou não reconhecer sua voz tão fina e fraca encontrava-se.

Ele o encarou, os olhos claros vazios.

Devia estar comprando balas, garoto...

Lágrimas reuniram-se nos olhos negros. De repente, em sua cabeça, quase pode ouvir o som de uma superfície de vidro estilhaçando-se...

Aquilo era o que restava de inocência dentro de si... morrendo.

— Aquele... aquele cara te machucou, Raven... Você tá... sangrando... Meu Deus, VOCÊ TÁ SANGRANDO, RAVEN!

Mas Raven parecia bem alheio a qualquer sangramento, até mesmo a dor que deveria estar sentindo.

Eu disse pra você que isso era assunto de adultos. Você não devia estar aqui, Giovanni.

— Raven... — definitivamente, ele não era mais tão inocente — você transou com aquele cara? Você é... gay?

Não.

— Pra qual pergunta?

Para a segunda, óbvio!

O silêncio foi desconfortável. Giovanni não conseguia tirar os olhos do rosto inexpressivo do mais velho. Era aterrorizante. Sentia que estava sufocando naquele quarto com o cheiro de sangue e sexo se misturando. Ao tentar encarar outro ponto que não fosse aquele semblante pálido, percebeu que haviam marcas roxas pelo abdome e pelos braços dele.

O maldito batera em Raven.

Ele te estuprou?! Como pode deixar algo assim acontecer, Raven?! Você é muito mais forte que...

Olhe bem o tom que está usando comigo, moleque! — ele rosnou um pouco e em seguida prosseguiu: — E sexo consentido não é estupro.

— Mas Raven... — agora seu coração estava pesado. Então isso queria dizer que o seu heroi havia...?

Sim, eu agi como uma puta. — ele respondeu lendo seu pensamento.

— Por... por que fez isso? Por que... fazer uma coisa dessas?!?

O dinheiro.

Ele não queria mover a cabeça, mas acabou virando-a para onde Raven apontava. Em cima de um criado-mudo dois maços grossos de notas de cem repousavam, iluminados de forma um tanto quanto diabólica pelo abajur. Mas era apenas impressão de sua mente confusa — só poderia ser...

— Por que não roubou?! — ele agarrou os próprios cabelos, como se isso fosse evitar as lágrimas e os soluços de saírem — Por que não matou aquele cara e roubou o dinheiro dele?!

Ele é um dos cafetões mais famosos da cidade. Se eu o matasse meio mundo viria atrás de nós. Não valia a pena.

— Então você resolveu dar o cu pra ele como forma de ganhar o dinheiro?!

Ele preferia que tivesse sido você no meu lugar — aqui, a boca do jovem escancarou-se, tão horrorizado estava. O tom do Nevasca não deixou de ser indiferente um único segundo. — Mas eu jamais permitiria que aquele velho nojento tocasse em você.

— Então você foi no meu lugar?

É o que parece.

— EU PREFERIA MORRER ENGASGADO COM MEU PRÓPRIO SANGUE DO QUE VER VOCÊ FAZER ISSO CONSIGO MESMO!!!!!

O tapa doeu. Não porque foi forte e sim porque Raven nunca o batera na vida, ao menos não a sério, pois no treinamento constantemente ele “levava uma surra”. Aquele era o primeiro tapa sério e ele não sabia como reagir.

Nunca... — a inexpressividade sumia, dando lugar a um sentimento de imensa tristeza — diga que preferia morrer. Nunca.

— Raven... olha o que ele fez com você! Ele... ele... Raven, você tá sangrando... — quanta vontade não sentira de descer as escadas e matar aquele viado obeso? Muita, nem saberia definir o ódio mortal que instalava-se na sua cabeça. Irônico, anos depois, analisando bem aquela questão... sentia-se como um vingador cobrando a honra perdida de sua donzela amada... que no caso era um homem, mas isso... era apenas um detalhe.

Eu não ligo! O meu corpo foi criado pra aguentar castigos piores. Mas o seu não. Se não fizer o tratamento rápido pode estar tudo acabado. Eu não tinha tempo para roubar bancos, sequestrar pessoas em busca de resgates ou fazer outra coisa... Os tiras nessa cidade estão em todo lugar e logo nos capturariam... Os trabalhos honestos? Rá! Os poucos para os quais eu teria chance de receber um salário não seriam o suficiente para cobrir um quinto do seu tratamento então... eu apelei pra isso.

Giovanni sentia que alguma coisa estava entalada em sua garganta. Percebeu que era um grito. Soltou-o furiosamente, caindo de joelhos.

— A culpa é minha! Toda minha!

Pare de dizer essas coisas!

Raven queria muito acalmá-lo, mas não o tocaria naquele momento. Não com o gozo do cafetão filho-da-puta escorrendo pelas pernas junto com seu próprio sangue. Não... não iria maculá-lo... mais.

Eu vou tomar um banho. Preciso me limpar. Espera aqui... Faça o que eu mando dessa vez, só pra variar.

O garoto estendeu a mão e segurou o pulso fino dele, impedindo-o de andar. Levantou com dificuldade e depois de engolir algumas vezes em seco (parecia que havia uma bala de canhão escorrendo dentro de si), conseguiu dizer:

— Eu... eu te ajudo, Rae-Rae.

E o mais surpreendente é que, apesar disso, quem tinha o olhar de piedade não era Giovanni, e sim Raven.

Afinal, seria a vida tão cruel a ponto de criar uma criatura tão boa quanto aquela, tão pura... apenas para fodê-la no final de tudo?

Não, baixinho. Você já fez demais por hoje.

Os apelidos. Ah... quantas saudades não sentia deles? Muitas. Era como ouvir seu filho te chamar de “papai” de novo depois que ele aprende que “coroa” é muito mais interessante.

— Está doendo muito?

— Acho que desloquei as costas, mas amanhã vai estar melhor. Meu corpo é rápido pra se curar, você sabe.

— E essas marcas? Ele... te bateu muito?

Já apanhei mais no reformatório, não se preocupe. Comparado com o Canibal, esse cara tinha “mãos de moça”.

Apesar de terem começado a rir (meio forçadamente), logo o jovem recomeçara a soluçar.

— Desculpe, Rae-Rae...

Não há nada para perdoar, baixinho. Eu... — pela primeira vez, Raven parecia sem-graça — Esquece.

— O que foi?

Estou... me sentindo um pouco tonto. Acho que é por causa da perda de sangue. Poderia me levar pro banheiro... por favor?

Sem hesitar o garoto o fez passar o braço em torno do seu pescoço e o levou cuidadosamente para o pequeno espaço dentro do quarto em que havia um boxe e uma privada sem tampa.

Ao tirar o lençol manchado, pela segunda vez na noite, conteve-se para não vomitar, dessa vez diante da imagem dos líquidos vermelho e branco escorrendo pelas coxas alvas do melhor amigo.

“A culpa é minha”, foi a única coisa que conseguiu pensar. A água foi ligada. O corpo de Raven começou a ser lavado. O sêmen e o sangue desciam ralo abaixo. “É toda minha...”

////

O rapaz ficou em silêncio olhando para as próprias mãos pousadas no colo.

A Tenente Moskov de repente se deu conta de que não sabia o que dizer; Raven fora capaz de vender o próprio corpo... só pra salvar a vida dele? Isso não... fazia sentido...

Raven era um psicopata, um louco...

Como...?

— Ele me ama. E eu amo ele. Essa é a única verdade, senhora.

////

Depois que os guardas levaram Giovanni embora, Moskov sentou na maca em que ele estivera e apoiou a cabeça nas mãos.

Se tudo o que ouvira era verdade... Então seria realmente muito difícil lidar com aquele homem.

Ou talvez... não.

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