Capítulo II: O Chamado (07/08/10)
— Então, deixe-me ver... — falou a mulher trajando um belíssimo terno cinza feminino feito sob medida. Ela usava óculos de armação fina e aparentava ter uns cinquenta e poucos anos. Seus dedos manicurados procuravam pelo nome dos homens diante dela no relatório que recebera. — Senhores... Puente e...
— Eu não tenho sobrenome — disse friamente o sujeito pálido e perturbadoramente alto sentado na esquerda.
— Muito bem. Sr. Puente e Sr. Raven. Sabem por que os chamamos aqui?
— “Chamar” é uma forma muito sutil de designar o que seus homens fizeram. Um eufemismo, por assim dizer...
Com os dentes trincados, Raven encarou Giovanni. Os guardas haviam pego-o por trás, deixando-o inconsciente (na certa sabiam do que seria capaz de fazer com eles se tivesse chance de reagir a entrada abrupta no quarto da pensão em que tinham se instalado), enquanto com o homem hispânico haviam lutado. E pelo nariz quebrado e o olho roxo que o rapaz apresentava, na certa a coisa não fora nada boa.
— Não era necessário usar de violência para com meu amigo aqui.
— Peço mil perdões. — Ela disse, entretanto, não aparentava estar sendo sincera, pois seus olhos castanhos permaneceram frios — Alguns dos meus homens não receberam o treinamento adequado para uma abordagem mais... delicada.
Se não estivesse amarrado com correntes à cadeira, Raven teria se esquecido de sua educação “cavalheiresca” e arrebentado a cara da vadia. Imobilizado, a única coisa que pode fazer foi rosnar exibindo os dentes amarelados e pontiagudos.
— Bem, esquecendo esse terrível engano, desejo fazer um pedido aos senhores.
— O que você quer? — foi a primeira manifestação de Giovanni ao entrar na sala.
O corte em seu lábio inferior ainda doía um pouco, mas o que realmente o incomodava era o olho: Não estava conseguindo enxergar muito bem com ele.
E o pior era que Raven sabia.
E se ele sabia...
— Bem, Sr. Puente, apesar de ser um mutante, é um Incendiário e isso não desperta grande interesse de nossa organização pelo senhor. Creio que a convivência com um Nevasca como o Sr. Raven tenha ajudado a evoluir sua mutação, afinal de contas, todos sabem das capacidades quase divinas que os Alphas tem.
— Claro que sim — concordou fracamente.
— Mas o senhor, como um simples Delta — nessa parte Raven esticou ao máximo o pescoço numa tentativa inútil de morder a mulher, exatamente como um cão de caça treinado faria — jamais atrairia tanta curiosidade de nossa parte, como disse a princípio... Não se não estivesse com seu amigo.
— Cale sua boca! — berrou furioso o homem pálido remexendo-se tanto na cadeira que quase a quebrou. — Cale sua boca, vaca! Ele é humano!
— Não, ele não é. É um Incendiário. Um Delta. Um tipo de mutação tão ridícula e nula que não tem serventia nem para os humanos nem para os mutantes. Não possui o intelecto avançado dos Boreais, as habilidades manuais dos Austrais ou a pseudo-onipresência dos Nevascas. Sua única capacidade é a de destruir e agir por puro instinto, um indivíduo em estado de natureza que não se encaixa no...
— Se você falar a palavra que estou pensando... — ameaçou por entre dentes o Nevasca — Não vai ter chance de ver o sol nascer amanhã.
— Bem... Querendo ou não, Sr. Raven, seu amigo não é de grande utilidade para nós. Pode ter aprendido a manipular um pouco de sua capacidade destrutiva, é verdade, mas continua não sendo tão surpreendente quanto o senhor.
— Então o liberte! Fique comigo, mas deixe-o ir!
— E permitir que ele forneça a localização de nossa base de operações? Não, isso não seria bom.
— Sua puta!
— Cuidado com o palavreado, Sr. Raven!
— Não! Cuidado você, puta! Se tocar em um fio de cabelo dele...
— Quero que nos ajude com alguns problemas que andamos tendo, Sr. Raven. O Sr. Puente pode ficar para acompanhá-lo. No entanto, se não estiver disposto a aceitar nossa proposta... — ela estalou os dedos e um homem trajando uma farda negra com uma grande cicatriz na bochecha surgiu atrás da cadeira em que Giovanni estava amarrado. Ele tirou uma máquina de choque da cintura e pressionou contra a nuca do rapaz, fazendo-o tremer por inteiro com violência. Com outro estalar de dedos, o homem afastou-se deixando o espanhol semi-consciente. — Acho que seu amiguinho vai sofrer bastante antes de poder morrer.
O rosto de Raven não exibia emoção nenhuma, porém... havia algo naqueles olhos de um tom tão claro de verde que beirava quase o branco que dizia: “Sou perigoso. Sou um assassino. Não me provoque ou vai ser o seu fim”.
A mulher — “Tenente Moskov”, segundo uma plaquinha dourada em cima de sua mesa — tinha certeza daquilo.
— Certo. Eu aceito.
— Me dê a sua palavra como Nevasca.
Raven praguejou alguma coisa num idioma estranho para a Sra. Moskov, mas certamente era algo sobre ela ser uma puta miserável.
— Temos mais informações sobre o seu tipo do que pensa, Sr. Raven.
— Se tivesse — o homem exibiu seus dentes afiados num sorriso de puro escárnio — teria como me torturar diretamente e não através de alguém com quem me importo. Você não sabe nem mais que 2% do que eu sou capaz de fazer, vadia.
— Tem razão, nossa organização desconhece grande parte das capacidades dos Nevascas... Conseguimos imaginar, por outro lado e isso é mais que o suficiente.
— Então é bom começar a imaginar o que eu vou fazer contigo quando tiver chance, puta... Porque não vai ser uma coisa muito bonita de se ver.
— Dê sua palavra, Nevasca, agora!
O rosto da mulher não exibia a hesitação que sentia por dentro ao dirigir-se aquele ser estranho e de cujos exames psicológicos detectavam a presença de uma leve presença de mentalidade sociopata. “Leve?” O sujeito parecia capaz de abrir a garganta dela usando as próprias unhas sem nem sentir um pouquinho de nojo ou remorso!
— Eu dou a minha palavra como Nevasca. Prometo não mentir ou trair. Promete cumprir o que digo até o final.
— Muito bem. Obrigada, Sr. Raven. Não sabe o quanto me sinto segura agora! — e voltando-se para o guarda loiro que aguardava do seu lado, disse:
— Leve o Sr. Puente para a enfermaria onde poderemos tratar melhor dos machucados dele. E você — o guarda próximo de Giovanni aprumou-se —, leve o Sr. Raven para o “quarto” especial que arrumamos para ele.
Os fardados bateram continência para a Tenente e enquanto o loiro arrastava Giovanni para fora do lugar, o sujeito da cicatriz colocava uma espécie de focinheira no rosto de Raven e atava firmemente suas mãos uma na outra com a ajuda de correntes de prata. Quando preparava-se para arrastá-lo também para fora, o homem pálido tropeçou nos próprios pés (presos com grilhões de grossas argolas de ferro) e apoiou-se na mesa da mulher, derrubando um pote com vários lápis e canetas.
— Vamos logo! — disse o guarda irritado, nervoso por não ter feito uma bela saída com o “prisioneiro” mais aguardado do lugar.
Puxou-o pelas dobras do cotovelo com força, tirando-o da presença da Tenente Moskov.
No corredor pelo qual andavam, Raven sorriu por detrás da focinheira. Em meio seus dedos longos e ossudos, sentiu a frieza do pequeno objeto metálico que pegara na confusão da mesa.
Algumas pessoas realmente não sabem apreciar um clipe de papel...