segunda-feira, 30 de agosto de 2010

The Raven Song: Capítulo 2

Capítulo II: O Chamado (07/08/10)

— Então, deixe-me ver... — falou a mulher trajando um belíssimo terno cinza feminino feito sob medida. Ela usava óculos de armação fina e aparentava ter uns cinquenta e poucos anos. Seus dedos manicurados procuravam pelo nome dos homens diante dela no relatório que recebera. — Senhores... Puente e...

Eu não tenho sobrenome — disse friamente o sujeito pálido e perturbadoramente alto sentado na esquerda.

— Muito bem. Sr. Puente e Sr. Raven. Sabem por que os chamamos aqui?

“Chamar” é uma forma muito sutil de designar o que seus homens fizeram. Um eufemismo, por assim dizer...

Com os dentes trincados, Raven encarou Giovanni. Os guardas haviam pego-o por trás, deixando-o inconsciente (na certa sabiam do que seria capaz de fazer com eles se tivesse chance de reagir a entrada abrupta no quarto da pensão em que tinham se instalado), enquanto com o homem hispânico haviam lutado. E pelo nariz quebrado e o olho roxo que o rapaz apresentava, na certa a coisa não fora nada boa.

Não era necessário usar de violência para com meu amigo aqui.

— Peço mil perdões. — Ela disse, entretanto, não aparentava estar sendo sincera, pois seus olhos castanhos permaneceram frios — Alguns dos meus homens não receberam o treinamento adequado para uma abordagem mais... delicada.

Se não estivesse amarrado com correntes à cadeira, Raven teria se esquecido de sua educação “cavalheiresca” e arrebentado a cara da vadia. Imobilizado, a única coisa que pode fazer foi rosnar exibindo os dentes amarelados e pontiagudos.

— Bem, esquecendo esse terrível engano, desejo fazer um pedido aos senhores.

— O que você quer? — foi a primeira manifestação de Giovanni ao entrar na sala.

O corte em seu lábio inferior ainda doía um pouco, mas o que realmente o incomodava era o olho: Não estava conseguindo enxergar muito bem com ele.

E o pior era que Raven sabia.

E se ele sabia...

— Bem, Sr. Puente, apesar de ser um mutante, é um Incendiário e isso não desperta grande interesse de nossa organização pelo senhor. Creio que a convivência com um Nevasca como o Sr. Raven tenha ajudado a evoluir sua mutação, afinal de contas, todos sabem das capacidades quase divinas que os Alphas tem.

— Claro que sim — concordou fracamente.

— Mas o senhor, como um simples Delta — nessa parte Raven esticou ao máximo o pescoço numa tentativa inútil de morder a mulher, exatamente como um cão de caça treinado faria — jamais atrairia tanta curiosidade de nossa parte, como disse a princípio... Não se não estivesse com seu amigo.

Cale sua boca! — berrou furioso o homem pálido remexendo-se tanto na cadeira que quase a quebrou. — Cale sua boca, vaca! Ele é humano!

Não, ele não é. É um Incendiário. Um Delta. Um tipo de mutação tão ridícula e nula que não tem serventia nem para os humanos nem para os mutantes. Não possui o intelecto avançado dos Boreais, as habilidades manuais dos Austrais ou a pseudo-onipresência dos Nevascas. Sua única capacidade é a de destruir e agir por puro instinto, um indivíduo em estado de natureza que não se encaixa no...

Se você falar a palavra que estou pensando... — ameaçou por entre dentes o Nevasca — Não vai ter chance de ver o sol nascer amanhã.

Bem... Querendo ou não, Sr. Raven, seu amigo não é de grande utilidade para nós. Pode ter aprendido a manipular um pouco de sua capacidade destrutiva, é verdade, mas continua não sendo tão surpreendente quanto o senhor.

Então o liberte! Fique comigo, mas deixe-o ir!

— E permitir que ele forneça a localização de nossa base de operações? Não, isso não seria bom.

Sua puta!

— Cuidado com o palavreado, Sr. Raven!

— Não! Cuidado você, puta! Se tocar em um fio de cabelo dele...

— Quero que nos ajude com alguns problemas que andamos tendo, Sr. Raven. O Sr. Puente pode ficar para acompanhá-lo. No entanto, se não estiver disposto a aceitar nossa proposta... — ela estalou os dedos e um homem trajando uma farda negra com uma grande cicatriz na bochecha surgiu atrás da cadeira em que Giovanni estava amarrado. Ele tirou uma máquina de choque da cintura e pressionou contra a nuca do rapaz, fazendo-o tremer por inteiro com violência. Com outro estalar de dedos, o homem afastou-se deixando o espanhol semi-consciente. — Acho que seu amiguinho vai sofrer bastante antes de poder morrer.

O rosto de Raven não exibia emoção nenhuma, porém... havia algo naqueles olhos de um tom tão claro de verde que beirava quase o branco que dizia: “Sou perigoso. Sou um assassino. Não me provoque ou vai ser o seu fim”.

A mulher — “Tenente Moskov”, segundo uma plaquinha dourada em cima de sua mesa — tinha certeza daquilo.

— Certo. Eu aceito.

— Me dê a sua palavra como Nevasca.

Raven praguejou alguma coisa num idioma estranho para a Sra. Moskov, mas certamente era algo sobre ela ser uma puta miserável.

— Temos mais informações sobre o seu tipo do que pensa, Sr. Raven.

Se tivesse — o homem exibiu seus dentes afiados num sorriso de puro escárnio — teria como me torturar diretamente e não através de alguém com quem me importo. Você não sabe nem mais que 2% do que eu sou capaz de fazer, vadia.

— Tem razão, nossa organização desconhece grande parte das capacidades dos Nevascas... Conseguimos imaginar, por outro lado e isso é mais que o suficiente.

— Então é bom começar a imaginar o que eu vou fazer contigo quando tiver chance, puta... Porque não vai ser uma coisa muito bonita de se ver.

— Dê sua palavra, Nevasca, agora!

O rosto da mulher não exibia a hesitação que sentia por dentro ao dirigir-se aquele ser estranho e de cujos exames psicológicos detectavam a presença de uma leve presença de mentalidade sociopata. “Leve?” O sujeito parecia capaz de abrir a garganta dela usando as próprias unhas sem nem sentir um pouquinho de nojo ou remorso!

— Eu dou a minha palavra como Nevasca. Prometo não mentir ou trair. Promete cumprir o que digo até o final.

— Muito bem. Obrigada, Sr. Raven. Não sabe o quanto me sinto segura agora! — e voltando-se para o guarda loiro que aguardava do seu lado, disse:

— Leve o Sr. Puente para a enfermaria onde poderemos tratar melhor dos machucados dele. E você — o guarda próximo de Giovanni aprumou-se —, leve o Sr. Raven para o “quarto” especial que arrumamos para ele.

Os fardados bateram continência para a Tenente e enquanto o loiro arrastava Giovanni para fora do lugar, o sujeito da cicatriz colocava uma espécie de focinheira no rosto de Raven e atava firmemente suas mãos uma na outra com a ajuda de correntes de prata. Quando preparava-se para arrastá-lo também para fora, o homem pálido tropeçou nos próprios pés (presos com grilhões de grossas argolas de ferro) e apoiou-se na mesa da mulher, derrubando um pote com vários lápis e canetas.

— Vamos logo! — disse o guarda irritado, nervoso por não ter feito uma bela saída com o “prisioneiro” mais aguardado do lugar.

Puxou-o pelas dobras do cotovelo com força, tirando-o da presença da Tenente Moskov.

No corredor pelo qual andavam, Raven sorriu por detrás da focinheira. Em meio seus dedos longos e ossudos, sentiu a frieza do pequeno objeto metálico que pegara na confusão da mesa.

Algumas pessoas realmente não sabem apreciar um clipe de papel...

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

The Raven Song - Capítulo 1

Capítulo I: Depois do Fim (06/08/10)

— Em que você está pensando? — questionou gentilmente o homem de pele morena e olhos negros amendoados. O cabelo preto fora cortado bem rente à cabeça. Os músculos do peitoral reluziam por causa do suor; estivera treinando a manhã inteira, afinal.

Raven tirou os olhos surpreendentemente claros da janela em que podia ver o céu cor dos restos de cinzas mortas de uma fênix que jamais ressuscitaria para voar. Giovanni estava recostado contra a porta do banheiro, encarando-o fixamente daquele jeito que às vezes o incomodava. Sem se abalar, entretanto, ele ergueu-se na banheira de latão e mesmo estando completamente nu, caminhou na direção do outro sem vergonha alguma.

O hispânico abriu espaço para que ele passasse, observando deliberadamente os cabelos negros picotados do amigo pingarem por causa da água.

— Gostava quando você usava cabelo comprido — disse de repente, sem medir suas palavras (como quase sempre o fazia). — Parecia...

Eu parecia uma garota! — cortou rispidamente o mais velho, denunciando que sua voz podia ter ficado mais grossa, entretanto permanecia espectral. Passou a toalha pelo rosto para em seguida enrolá-la na cintura esguia. — Além do mais, aquilo denunciava quem eu era...

— Sim... Talvez tenha razão, Rae-Rae.

Eu tenho razão, Giovanni. Não creio que ainda não tenha aprendido isso.

— Claro que aprendi, Rae-Rae. Depois de tantos anos, não há como não aprender.

Novamente, aqueles olhos negros o encurralavam contra a parede. Quase vinte anos encarando aqueles malditos olhos, mas eles permaneciam com um encantamento místico que o fazia lembrar-se sempre do passado. Antes que ele, Raven, o conhecesse. Antes que ele passasse a se “comportar bem”, pois precisava ser o exemplo daquele pequeno espanhol de fala tenebrosamente sincera.

Mas, daquela vez, lembrou-se de um período depois que havia conhecido-o.

— Como seu cabelo é bonito, Rae-Rae! — exclamara o menino de 9 anos enquanto Raven fazia abdominais no chão da cabana que haviam encontrado.

O que?

— Eu disse que gosto do seu cabelo!

Isso eu ouvi. Porém não gosto que me chame desse jeito, sabe disso! Eu tenho um nome e ele existe para ser usado. Entendeu bem, moleque?

— Meu nome é Giovanni! — ele ergueu-se da cama irritado pela forma fria com que o outro o tratava. Impulsivamente, sentou ao lado de onde Raven estava se exercitando e pôs-se a resmungar: — Você reclama que eu não te chamo pelo nome, mas você faz a mesma coisa comigo! Por que precisa ser tão malvado comigo, Raven? Você sabe que eu te amo...

O mais velho parou no meio de uma abdominal e o encarou. Seu físico ficara mais musculoso agora aos 15 anos. O cabelo alcançava a cintura, sedoso e delicado, exalando um perfume surpreendentemente bom de cravos. Cravos como os que se coloca nas lápides dos homens bons que morrem em guerras sem sentido...

Eu também te amo, Giovanni. — sussurrou sentando-se de frente para o menino. Com delicadeza, bagunçou seus cabelos. — Você é o meu irmãozinho.

— Jura?

Juro.

— Promete que nunca vai me deixar sozinho?

As promessas quase sempre são feitas sem serem cumpridas no final, mas vou prometer. Mesmo assim, acredito que no final você é quem vai me largar para poder ficar com suas namoradas...

— Trocar você por garotas? Eca! Você bebeu hoje de manhã, Rae-Rae? Garotas não sabem nada de luta e estão sempre com medo de quebrar as unhas!

Mais respeito, garoto! — apesar de parecer sério, porém, Raven agarrou o menino com uma chave de pescoço e começou a bagunçar freneticamente seu cabelo escuro — Um dia você vai me mandar pastar só pra ficar sozinho com garotas. Vai por mim, eu sei das coisas.

— Mas você nunca me largou pra ficar com garotas!

— É... diferente.

— Por que?

— Porque... Porque eu não quero, ok?!

Ele o largou e reiniciou suas abdominais, parecendo ignorá-lo.

Rae-Rae? — chamou inocentemente o menino.

Raven suspirou e tornou a interromper sua sessão de exercícios, sentando com um joelho dobrado próximo o peito.

— O que foi, Giovanni?

— Você fica triste por ser um Nevasca?

Os olhos negros e os claros se encontraram por uma fração de segundo antes de tornarem a se desviar.

Não.

— Está mentindo.

Talvez.

— Eu queria ser humano...

— Mas você é humano!

— Eu não sou e você sabe disso, Raven!

Então, Giovanni aos 9 anos havia levantado e ido para a cama aos soluços, cobrindo a cabeça com uma colcha de retalhos. Raven aos 15 anos (porém nem por isso menos paciente), havia sentado na cadeira de frente para a cama do menino e aguardado...

Aguardado que ele chorasse todas as mágoas.

E quando finalmente isso aconteceu, ele sentou na cama com a cabeça descoberta e abraçou Raven, seu primeiro e único melhor amigo.

— Desculpe por ter gritado com você... — murmurou de encontro o peito pálido do mais velho.

— Tudo bem, baixinho. Eu entendo o que você está sentindo.

— Você é a melhor pessoa do mundo, Rae-Rae.

— Não... Felizmente eu não sou, baixinho...

...Porque geralmente os bonzinhos só se fodem.

Raven? — o rapaz tornou a chamá-lo enquanto ele se vestia. Seu tom era alarmado.

— O que foi, Giovanni?

— Você escutou isso?

— Isso o...?

Entretanto, a pergunta foi interrompida pelo barulho da porta do quarto sendo arrancada violentamente de suas dobradiças.

Não houve tempo para reação por parte do homem pálido: o mundo já estava perdendo sua luz e metamorfoseando-se em trevas.

E às vezes até os monstros caem do topo de seus castelos arruinados e destruídos...

The Raven Song - Prólogo: Ad Perpetuam Rei Memoriam


Sinopse: O medo se propaga como uma doença atualmente. Em um mundo onde a esperança perdeu-se em meio os fumadores de crack e a justiça roda bolsinha como prostituta, dois homens seguem, mas não mantendo-se alheios do lixo como a grande maioria e sim combatendo-o. Quando ambos são postos à prova, o destino começa a traçar seus fios enigmáticos numa tapeçaria sombria e que pode contar histórias que nem sempre possuem finais felizes.

Para todo fim, entretanto, há um começo.

E ele será contado agora.


Prólogo: Ad Perpetuam Rei Memoriam (06/08/10)

(Possui cena de estupro)

Minha vida inteira foi povoada por péssimos exemplos.

O primeiro deles foi o que mais me ensinou sobre o mundo: Minha mãe. Quando eu nasci, ela tentou me matar sufocando-me com meu cordão umbilical. Entendo o lado dela. Sério. Ela tinha acabado de dar à luz a um monstro. O Governo viria atrás dela por minha causa. Então, desesperada, tentou colocar um ponto final antes mesmo que essa história de terror começasse — uma atitude racional, plenamente lúcida e consciente.

Mas ela não conseguiu.

Infelizmente.

Os homens imundos, de olhares malignos saíram de trás de um conjunto de moitas e conseguiram assustar os cavalos que guiavam a carroça o suficiente para que eles caíssem de lado, levando a mesma junto. Os cavalos conseguiram escapar; a família não.

A mulher de traços hispânicos ergueu-se desesperada em busca do filho, seu único filho, seu tesouro precioso. Ele batera com a cabeça no chão e sangrava um pouco, mas nada sério.

Entretanto, aqueles mendigos cuidariam para que a situação não ficasse assim.

Eles pegaram o marido da mulher, um homem magro de cabelos brancos prematuros e começaram a socá-lo no estômago, rindo loucamente, como se sob efeito de algum poderoso gás do riso. Um dos mendigos ergueu a mulher pelos belos cachos negros e ela gritou aterrorizada, largando o filho em estado de choque no chão.

O que a minha mãe me ensinou é de que todo mundo vai te foder se você não se encaixar no modelo do sistema. Se você é pobre vão virar a cara quando você passar. Se você é preto vão te jogar numa cela de cadeia. Se você é judeu vão enchê-lo de porrada até você gritar que Jesus é o misericordioso salvador. Se você não é humano... vão te fuzilar num terreno baldio abandonado, se não te estuprarem antes disso.

Como eu disse, vão foder você se você não for parte do sistema.

Porque é isso que a porra do sistema faz: ela te fode depois de ter feito promessas sobre uma puta chamada liberdade e outra chamada justiça.

Dois mendigos seguravam a mulher no chão enquanto um terceiro abaixava as calças e levantava as saias dela bem ali, na frente do próprio filho, um menino de aproximadamente 6 anos. Os olhos do garoto se arregalaram com o grito de dor da mãe ao ser penetrada, mas ele não podia fazer nada. Ele era pequeno demais, fraco demais. Constantemente vivia doente e seus pais o estavam levando ao médico justamente para tratar daquele problema, pois o dinheiro da venda da colheita havia rendido mais aquele mês... Mas parecia que não haveria mais médico.

Não haveria mais nada de bom para ele.

O pai estava coberto de hematomas e sangue, jogado inconsciente no chão ao lado da pasta em que o menino carregava seus livros da escola e desenhos. Os mendigos que não estupravam sua mãe remexiam ali, rasgando figuras feitas de giz de cera que representavam sois sorridentes, famílias unidas, animais de olhos brilhantes entre outros...

Não sei como sobrevivi. Só sei que vivi nas ruas, sozinho até os doze anos de idade.

Trabalhei com um mágico de rua durante certo tempo, roubando carteiras, joias, relógios e doces dos desavisados que paravam para observar o espetáculo ridículo que ele fazia. No final, cheguei a conclusão de que era bom demais para aquilo. O sujeito era um pateta. Um pedófilo também, mas ele não se atreveria a tocar em um fio de cabelo meu porque sabia que seria a primeira e última vez. Se ele tentasse — e isso deixei bem claro, logo que nos conhecemos e ele percebeu que eu não era humano — eu o puniria da forma mais horrível possível para tipos feito ele, assim jamais poderia meter o pinto em uma criança de novo. O mágico entendeu bem o recado. Nunca tentou.

Largando-o de lado, comecei a praticar pequenos furtos até ir parar em uma casa de correção para meninos. Aprendi a ler, escrever e matar. Matar pra valer. Havia um garoto lá de quem ninguém nunca soube o nome, então apelidaram-no de Canibal. O motivo... Bom, você não vai querer saber — mesmo que diga que sim, seu inconsciente puritano vai estar dizendo, gritando NÃO. Ele me ensinou como rasgar um jugular sem sujar as mangas da camisa. Foi muito útil, posso lhe afirmar...

Sua mãe morrera. O mendigo havia sufocado-a enquanto metia o pau dentro dela. Os outros resmungaram por breves instantes, mas logo formavam fila para violentar o cadáver (“Um por vez, por favor! Esperem a sua vez, por favor...”).

O menino permanecia jogado no chão olhando. De seus olhos negros derramavam-se lágrimas grandes, manchando as bochechas morenas.

O mundo... é cruel.

Um mendigo que havia acabado de violentar o cadáver levantou ainda com o pau duro pra fora da calça e voltou-se para o garotinho.

— Ei, pessoal, olha só o que nós temos aqui! — berrou com uma voz destruída pelo fumo. — Carne nova!

O mundo... vai te foder quando tiver chance.

O garotinho gritou enquanto os homens arrebentavam o cinto de sua calça. Aqueles homens que pareciam animais selvagens, poluídos pela droga do sistema. O que havia acabado de violentar o cadáver da mãe do garoto ia ser o primeiro quando...

A porra do mundo vai te foder... a menos que alguém faça alguma coisa.

Um chute acertou a cara do mendigo em cheio. Seus companheiros o seguraram antes que ele caísse no chão. Diante dele, havia um garoto magro e horrivelmente pálido. Seus cabelos longos caíam até o meio das costas e eram negros como o fim que se encontra para os homens com sífilis. Suas unhas não eram aparadas havia anos e pareciam capazes de cortar placas de metal ao meio sem maiores dificuldades.

Alguém tem que dar a droga do primeiro passo. E às vezes... esse alguém tem que ser você. Porque se você não fizer nada... ninguém vai fazer.

— Guri... a gente vai acabar contigo! — gritou o mendigo que havia tentado violentar o menino de traços hispânicos.

Pode vir... — falou o garoto com uma voz espectral que parecia vir do fundo de sua alma. Os olhos dele eram escondidos pela franja mal cortada que caía-lhe pelo rosto. Havia um lápis preto no 2 preso na sua orelha desprovida de cor.

Enquanto o mendigo corria na sua direção, o garoto tirou lentamente o lápis detrás da orelha e atingiu-o no meio da base de seu pescoço. O homem caiu de joelhos agarrando o buraco que não parava de jorrar sangue, enquanto aquele indivíduo que não aparentava mais de doze anos começava a derrubar, um por um, os mendigos.

No final, todos estavam mortos.

Havia sangue apenas no lápis e na ponta dos dedos ossudos do garoto. Ele olhou para o lápis e jogou-o apaticamente no chão, pegando do bolso da camisa social e surrada que usava, um maço de cigarros. O maço era bonito, vermelho brilhante e com desenhos de raios azuis e dourados. Ele ficou olhando-o durante um longo período antes de tornar a guardá-lo e dirigir-se aonde o menininho encontrava-se debruçado sobre o pai. Para tanto, passou pelo corpo violado da mãe sem lançar-lhe um olhar de esguela sequer.

Desde que eu olhei pra ele, eu soube.

Eu soube que era quem eu procurava durante doze anos de existência sem sentido.

Eu olhei bem no fundo daquele par de olhos que pareciam formar um eclipse negro e morto... E senti.

O pai do menino havia caído de mau jeito no chão. Batera a cabeça com força. O menino pensara que ele estivesse desacordado, mas não estava. Ele estava morto. A parte detrás do crânio havia sido esmagada e agora o sangue manchava os sapatos de couro desgastado do pequeno espanhol.

O garoto pálido e alto, com calças de suspensório que subiam pelo menos quinze centímetros acima de seus tornozelos, parou ao lado dele. Usava um casacão jeans escuro e velho, mas ainda assim muito bom para se aquecer do frio. Não que ele precisasse... Usava-o por motivos puramente estéticos e também para disfarçar o que os outros desconfiavam: Que ele não era humano. Que seus dentes afiados e seu olhar penetrante eram muito mais do que aparentavam.

Eu juro que não fui eu quem o escolhi. Foi ele quem me escolheu. A culpa de tudo o que aconteceu foi dele, não minha. Como eu poderia resistir? Como eu poderia... como eu poderia não querer?

Qual é o seu nome? — inquiriu o garoto estranho.

— Giovanni — respondeu num sussurro delicado o menininho. Passando a mão pelo nariz e pelos olhos para que não houvesse mais lágrimas ali (numa atitude surpreendentemente adulta para uma criança), o garoto ergueu o rosto para aquele rapaz perturbadoramente alto. — E o seu?

Foi ele... Foi apenas... ele.

Quando olhei no fundo dos seus olhos negros, eu soube. Quando ele me falou que seu nome era Giovanni, eu soube. Quando eu o “salvei” aquela noite — acidentalmente, pois pretendia roubar o que os mendigos haviam deixado para trás (mas nunca, jamais, violentar o cadáver da mãe, que isso fique claro!) — e comecei a criá-lo, eu soube. Eu soube que... era ele.

Era ele.

Eu sou Raven. — respondeu friamente com sua voz fantasmagórica e rouca.

E esse é apenas o começo do fim.