sexta-feira, 24 de setembro de 2010

The Raven Song - Capítulo 4

Ok, depois de ler, reler, reescrever e tomar alguns "esporros" básicos da minha beta (*pigarro* né, Samila?), finalmente esse capítulo ficou "apresentável".

O que não quer dizer que ele me deixe menos revoltado, irritado e/ou envergonhado. Provavelmente ninguém vai entender porque, mas enfim... Ninguém quer saber disso mesmo, então vamos logo ao capítulo!

Mas antes, um último recado:

Não vou dizer que isso aqui não é recomendável para menores de 18 anos, porque sei que a maioria que lê isso não tem nem a pau 18 anos - nem EU tenho! -, mas é bom de qualquer jeito ficarem avisados que haverão cenas de estupro e sexo EXPLÍCITAS nesse capítulo, então não quero nenhum bebê chorão reclamando que o "tio Sara Pervo" não disse nada e acabou com a inocência de alguém! Desde já fica o seguinte: Se você leu, foi porque quis... e também porque essa história é boa demais pra não ler! XDDD /apanha



Capítulo IV: A Morte de Deus (ou “Demônios que Derretem”)

— O que você faria — começou a mulher, analisando-o por inteiro enquanto caminhava ao redor da plataforma de metal na qual ele encontrava-se ajoelhado e firmemente preso, uma focinheira impedindo-o de mover o maxilar — para salvá-lo, Sr. Raven?

Os olhos verdes do homem se desviaram dela e encararam o chão, pensativos.

///

Você nasce. Sua mãe tenta te matar antes mesmo que você grite como qualquer bebê. Ela não consegue — sempre foi uma inútil. Então, te manda para a família do seu pai retardado mentalmente. Aqueles lá te dão pro orfanato. No exato momento em que você aprende a andar com suas pernas magricelas (mais ou menos com um ano e meio), foge do lugar sem olhar pra trás. Você aprende a se virar sozinho e aprende também que não existem as pessoas legais que aparecem sempre nos desenhos animados que as crianças ricas, felizes e que tem pais, assistem no sábado de manhã. Você aprende a degolar sem sujar as mangas da camisa e como roubar um relógio sem que ninguém perceba — pelo menos a temporada com o mágico e seu baralho de cartas vagabundas deu-lhe alguma habilidade promissora com as mãos.

A única coisa na qual você parece ser bom é em destruir.

Destruir, destruir, destruir...

Você é o rei da destruição, o rei da dor.

Sabe ler e escrever, mas nunca foi pra uma escola de verdade. Também sabe tocar um pouco de violino, mas que diferença isso faz na hora de procurar um emprego?

Você é — socialmente — considerado tão imbecil quanto o seu pai mongol.

Você é tão “inútil” quanto um preto na hora do trabalho.

Você provoca tanto asco nas pessoas quanto a visão de um veado beijando outro.

E, rá, é bom você aprender a disfarçar sua revolta atrás dessa brilhante máscara que chama-se “ironia”, pois adivinhe só? Você não pode morrer!

Sim, isso mesmo, você é aquilo que os cientistas chamam de “milagre” e o que os crentes cospem como “aberração”. Vai se acostumando, amigo... Porque as coisas vão ser sempre assim pra você.

Ou talvez não.

Porque existe um par de olhos negros nessa porra de mundo que não te olha como se fosse lixo. Eles não te julgam, não te recriminam. Eles não sentem pena de você (e provavelmente esse é o ponto mais importante e que mais te agrada). Esse par de olhos diz, silenciosamente, enquanto seu pai está com o crânio esmagado, sangue escorrendo na direção de seus sapatos desgastados e a mãe com as pernas arreganhadas exibi-lhe a boceta espanhola: “Eu entendo você”.

Como não amar esses olhos? Como não desejar que eles jamais vejam o mesmo que você?

Você então passa a cuidar desse pequeno indivíduo de olhos negros. Tenta torná-lo uma “pessoa de bem”, mas você mesmo não é uma pessoa de bem, então como? A questão é sempre o “como”...

Esforce-se. Persista. Observa as mães no parquinho, às escondidas, como um pedófilo admirando seus objetos de adoração. Elas amam os filhos, são cuidadosas. Elas os protegem. Então é assim que você tem de ser! Pode parecer estranho a princípio que você aja como uma mãe, mas os pais sempre parecem tão ocupados para lidar com seus filhos...

A realidade, meu caro, é que você ama essa criança. Ela é a única coisa que resta de bom em você. Você não é o pai dela, nem biologicamente ou espiritualmente. Você jamais chegaria tão longe a ponto de afirmar tal ou pedir pra que esse pequeno indivíduo de olhos negros confirme um parentesco inexistente — além de indesejado. Pois você, em momento algum, desejaria que essa criança tivesse algo seu. Ela é perfeita justamente porque é o contrário de você, porque nada nela traz a mais remota lembrança de sua perturbadora pessoa. Seu oposto, um pólo positivo.

Uma luz num reino de trevas.

Sua salvação.

Seu Deus.

Mas o que acontece... quando você percebe que se deu a um luxo para o qual nenhum demônio nasceu?

Quando você percebe que cometeu o pior erro de toda a sua existência, o crime cuja punição é a mais perversa em todo o Universo.

Você sonhou.

Ah, seu grande merda, você sonhou!

///

Os dois se agarravam, corpos roçando-se de forma selvagem e línguas travando uma batalha sem vencedor ou perdedor. O homem de olhos claros jogou-se em cima do hispânico, arrancando-lhe a camisa e acariciando os músculos de seu peito bem trabalhado e já com algumas cicatrizes.

— Hoje é o seu aniversário e eu tenho um presentinho pra você... — ele dizia já abrindo a calça, exibindo melhor o volume entre suas pernas.

Sai de cima dele — ordenou calmamente uma voz espectral.

O homem olhou por cima do ombro e deu de cara com um sujeito recostado relaxadamente na porta fechada, encarando-o com a expressão mais entediada do planeta.

— Ei, cara, não vem com essa! Estou atendendo um cliente e é melhor você cair fora daqui ou...

Antes que pudesse concluir suas ameaças vazias, ele foi tirado da cama e jogado com violência no chão. Logo, percebia que um canivete na ponta da bota do estranho pressionava-lhe perigosamente o membro desperto.

Melhor cair fora ou eu arranco seu ganha-pão, veado.

Rapidamente, o homem arrastou-se até a porta implorando desculpas e sumiu, deixando-a entreaberta ao sair.

E então — Raven voltou-se para um Giovanni envergonhado e ofegante — o que raios pensa que está fazendo aqui?

— Estou comemorando o meu aniversário de 18 anos. O que te parece? — resmungou sem encará-lo.

Me parece que você estava prestes a dar a bunda praquele merdinha.

— Eu estava mesmo. Algum problema com isso?

Raven inclinou a cabeça lentamente, fitando o rosto corado do melhor amigo. A tonalidade dos seus olhos beirava o branco e as pupilas encontravam-se encolhidas ao máximo, quase desaparecendo.

Não tenho nada a ver com essa parte da sua vida. Por mim você pode fazer o que quiser com o seu traseiro. Mas procurar garotos de programa?! Isso não faz o seu estilo.

— Como se você soubesse qual é o meu estilo!

Ele deu uma risada debochada, ainda encarando o rapaz com os olhos fixos.

Eu te conheço melhor que você mesmo. E não foi essa a educação que eu te dei.

— Você fala como se fosse meu pai... — o hispânico escondeu a ereção com um travesseiro e tomou coragem, devolvendo o olhar intenso que Raven lhe direcionava — Você não é o meu pai.

Eu nunca disse que era. — ele piscou e seus olhos começavam a ficar um pouco mais normais. Seus dedos acariciaram a têmpora esquerda dele — O que está havendo com você, baixinho? Anda tão estranho nos últimos dias...

— É que... — as defesas caíram. Segurando a mão de Raven em seu rosto, ele não disse mais nada.

O homem pálido começou a ficar preocupado.

Giovanni... O que está acontecendo?

— Nada, Rae-Rae.

E aquele agradável rapaz que saiu daqui era o Mickey Mouse e esse lugar é a Disneylândia!

— Por que você não para de insistir?! Eu não quero falar sobre isso, ok?!?

Antes que pudesse correr dali, o jovem foi agarrado pela nuca e Raven aproximou-se perigosamente de seu rosto. Ele estremeceu, lembrando-se que o mais velho fizera a mesma coisa com sua recente vítima — uma adolescente de aproximadamente 16 anos, grávida, amante de um cretino cuja empresa servia para lavagem de dinheiro e que andava chantageando um político influente. Havia aberto a barriga dela e puxado as tripas pra fora, escrevendo com elas uma mensagem para o sujeito, dizendo-lhe que se continuasse a importunar o “Sr. X”, coisas muito piores aconteceriam com a esposa dele e seus dois filhos pequenos...

Bem, era uma grana boa e um trabalho simples. Não o culpe.

Eu só estou preocupado com você.

— Rae-Rae... eu...

Me conte. Sou ou não sou seu amigo?

— Eu tenho medo, Rae-Rae.

Apenas uma respiração soava no quarto. A outra encontrava-se presa pela metade no peito do Nevasca. Giovanni sentia a mão tão gelada quanto a de um cadáver em seu rosto, e acredite, ele sabia muito bem como era uma, afinal já havia carregado muitos deles, mais vezes do que gostaria...

Tem medo de mim, Giovanni?

— Não. Eu tenho medo que você me odeie.

Eu jamais te odiaria. Pare de dizer merda.

— Se é assim, só me resta... — ele interrompeu-se ao colar os lábios de ambos. Podia sentir o gosto da boca de Raven: era uma mistura estranha de nicotina com naftalina, que teria enojado-o se não tivesse comido coisas da rua que tinham gostos muito piores. O que o afastou realmente foi o fato do homem não mover um único músculo durante o beijo.

Quando seu rosto estava longe do dele, Raven virou lentamente a cabeça para o lado, deixando que seus cabelos cor de piche escondessem seu semblante indiferente.

— Rae-Rae...?

Silêncio.

— Rae-Rae...? Sinto... sinto muito.

Silêncio.

— Por favor, diga al...

Há quanto tempo — pronunciava pausadamente cada palavra, o tom de voz vazio — você sente-se assim em relação a mim?

— Já tem algum tempo — admitiu.

Quanto?

— Eu não sei...

Foi desde aquele dia do cafetão, não foi?

— Não.

— Foi antes então?

— Eu não me lembro!

Quando te salvei? Foi esse o dia?

— Não... foi quando você — seus olhos arderam — disse que me amava.

Lembro disso. Foi algum tempo depois de eu te salvar. Um moleque. O que pode saber sobre esse tipo de sentimento?

— E o que você sabe sobre amor, hein?!?

Quer ser meu amante?

O silêncio ergueu seu manto mais uma vez.

— O qu...?

Quer transar comigo? Ficar por cima de mim? Ou seria por baixo? Hm, penso na segunda opção, você sempre teve jeito de mulherzinha. Aquele ar gentil, delicado... — o olhar verde-nadja era cruel.

— Raven do que você está...?

Antes que pudesse concluir a frase, o homem pulou em seu corpo com violência, segurando-lhe o pescoço enquanto ficava no meio de suas pernas. Os cabelos ainda caíam em seu rosto, deixando à mostra pedaços cortados de seus olhos arregalados e de aparência psicótica.

Quer que eu coma você, bicha? Que eu te enrabe? É isso o que você sempre quis, não é mesmo?! Me enganou todo esse tempo... Quando eu dava banho em você, te abraçava, dormia do seu lado por causa dos malditos pesadelos, tudo, TUDO! Tudo foi um plano seu, não é mesmo? Me manipulou, aproveitou-se dos meus sentimentos... Seu veado miserável!

— R-Raven... Nã-não...

Uma ardência estranha o fazia piscar incontrolavelmente. Viu alguma coisa molhada cair no rosto moreno do rapaz abaixo de si e o primeiro pensamento que lhe ocorreu foi: “Estou derretendo. Maldição, meus olhos estão derretendo, eles vão cair da minha cara! Aahh, merda!”.

Eu amei você! E você me traiu, seu maldito! Está... merda!... isso está me matando. Você está me matando! Eu vou... acabar com você... antes que me mate. Vou...

As mãos desprovidas de cor moveram-se, arrebentando a fivela do cinto que Giovanni usava. Ele o virou de costas na cama, empinando sua cintura com brutalidade. Arrancou a calça dele, um ofegar animal escapando de seus lábios.

Naquele momento, ele não era um homem.

Você me quer? Vou te mostrar o que acontece com quem me quer...

Abaixou as próprias calças.

Penetrou-o sem piedade até o fim.

Ouviu-se um princípio de grito escapar dos lábios do jovem, mas sua boca foi coberta com o braço de Raven. Sentiu o gosto amargo do couro que constituía o casaco pesado que ele sempre usava e lágrimas rolaram por seu rosto, assim como acontecia com o mais velho (“estou derretendo... merda, estou derretendo!”).

E foi assim durante longos minutos.

A cama tremia, batendo de encontro à parede em cada estocada dolorosa.

Dolorosa para ambas as partes. Era um ato de ódio entre pessoas que se amavam. Um ato de medo, de covardia. Um ato que visava mostrar o segredo que sempre estivera à mostra...

Os demônios são apenas isso: demônios.

Gozou. Seu sêmen escorreu pelas coxas do homem quando separaram-se e enquanto guardava o pênis flácido dentro da calça, evitou encarar o corpo suado e fraco jogado naquela cama de lençóis baratos.

Raven ainda sentia seus olhos “derretendo”.

Foi tudo um erro. Desde o começo. Eu devia ter matado você junto com aqueles mendigos. Você... seu cretino, você me deu esperança! Mas olhe o que se tornou no final... Você mentiu.

— Não... — a voz saía num sussurro exausto. Giovanni sentia todo o seu corpo rugir de dor. Sentia como se tivessem aberto-o lentamente por dentro com um facão. Sentia-se rasgado em dois. — Eu nunca te enganei. Eu amo você...

Seu imbecil! — agarrou-lhe chumaços do cabelo negro e puxou a cabeça para cima, encarando-o com os dentes amarelados à mostra — Eu abusei do seu corpo. Como ainda pode me amar?! Seu... seu...

Socou-lhe o rosto até sangue escorrer por seu nariz e apenas parou quando teve a impressão de que o mataria.

Eu te odeio.

— Eu te amo. — sussurrou debilmente o rapaz, quase desmaiando. A morte para ele seria ótima naquele instante, quando todo o seu corpo doía. Até mesmo sua alma gritava, sangrando. — Eu te amo!

Isso é doentio. Pare de repetir! Ou vou fazer aquilo de novo! Vou fazer até você se convencer de que nunca vai ter mais nada de mim além da dor e do sofrimento! Crie amor-próprio.

— Pode me estuprar o quanto quiser. Não faz diferença. E essa porra de “amor-próprio”... não passa de um nome mais bonitinho para “auto-piedade”.

Não seja teimoso. Por favor, Giovanni.

— Raven, me desculpe por ser assim. Mas não vou mudar... — e aqui, engasgou-se com um pouco de sangue que descia por sua garganta — Eu amo você de verdade. Me deixe te ensinar a amar, Rae-Rae. Me deixe cuidar de você...

Um sorriso amargo surgiu nos lábios finos e de gosto tóxico.

“Cuidar de mim”? Não. Eu não preciso de proteção. Não preciso do que você tem a me oferecer. Só não te mato agora porque não vale a pena perder meu tempo com um traidor medíocre.

— Como você pode ser tão cego, Raven? Como pode ser tão estúpido?!

Não sou eu quem depois de ser estuprado ainda tem coragem de dizer para o agressor que o ama...

— O amor perdoa, Raven. Ele...

Blábláblá! Amor, amor, amor! AMOR?! Vá para o inferno com o seu “amor”! O amor é como Deus: Dizem que ele salva, que nos torna bons, mas veja o que o “amor” fez com o mundo, garoto! Acha que mulheres negras terem ratos vivos enfiados na vagina é um “ato de amor”?! Acha que crianças debiloides serem violentadas por cães treinados especialmente para isso pelos militares é um “ato de amor”?! Acha que... uma mãe tentar matar o próprio filho é um “ato de amor”?! Se isso é o “amor”, eu prefiro o ódio; pelo menos ele não é dissimulado, não engana, não dá falsas esperanças. E se o ódio não te agrada, então pegue a indiferença, feche sua boca e finja que não vê o quanto essa porra de mundo está fodida, pois é exatamente isso que as autoridades fazem! É o que o “grande e maravilhoso” Deus faz, ou faria, se Ele também não passasse de uma mentira! O “amor” é uma mentira tão grande quanto Deus! E eu... estou cansado de tantas mentiras.

Raven deu as costas para o jovem e abriu a porta, arrancando pelo corredor sem dar atenção para vários rapazes e moças semi-nus que o encaravam silenciosos. Ele descia as escadas rapidamente, pulando o último lance de degraus assim como um mendigo de pau imundo que encontrava-se jogado ali, talvez morto ou apenas bêbado.

O Nevasca saiu do prédio e andou. Andou, andou, andou. Andou até parar próximo da floresta. Estava frio e ele sentia o ar gelado atingir seu rosto molhado furiosamente.

Ele deixou-se cair de joelhos e vomitou.

A culpa é sua. É toda sua, seu babaca.

Não foi bom o suficiente. Não conseguiu criá-lo da forma correta. Não é seu filho, jamais seria, mas... você não o criou da mesma forma que um pai (ou uma mãe, tanto faz!)? Não o protegeu, o educou, o alimentou? Não o amou antes do seu imenso ego? Por que então ser castigado dessa forma? Por que ser traído desse jeito? O que você fez para merecer tal tratamento? Por que...?

A criança de olhos negros que você amou e protegeu, diz que te ama. Te ama como homem. Sente atração pelo seu horrível corpo deformado. Deseja beijá-lo como um tolo apaixonado faz. Isso é apenas a prova concreta de que você é um fracasso. Um completo fracasso. Não é certo. Isso é... é... é...

Pare de choramingar, seu bostinha.

Isso não vai fazer com que seu destino seja diferente.

Vomitou. E de novo. De novo. Até não haver mais nada em seu estômago, apenas a sensação estranha de bílis na boca. Limpou o queixo com as costas das mãos, mas não levantou-se.

Você tentou, parceiro.

Seu estigma sempre será tentar dar o melhor de si para sua criança, sabendo que jamais vai conseguir alcançar seu máximo.

Porque os demônios não foram feitos para esse tipo de coisa.

Aceite os fatos.

Não se sentirá melhor em nada, mas pelo menos não seja hipócrita como os outros...

///

A focinheira caiu no chão com um som seco quando Moskov girou a chave no cadeado, deixando-a escorregar pelo maxilar do homem.

— Eu... faria qualquer coisa. — foi a resposta que a Tenente teve.

A mulher sorriu.

— Está fazendo uma ótima escolha, Sr. Raven! Agora, vamos discutir seu trabalho...

Estou pensando no bem da minha criança. Afinal de contas...

///

Raven sentiu uma mão pousar em seu ombro. Ele não ergueu a cabeça. Permanecia ajoelhado, sentindo os joelhos começarem lentamente a congelar.

— Vamos sair daqui, Rae-Rae — disse com calma a voz acima dele.

Ele levantou-se.

Não sabia muito bem como havia parado no quarto daquele prostíbulo mais uma vez, só retomou consciência do que acontecia ao seu redor quando notou que seus pés estavam enfiados em uma bacia com água quente enquanto Giovanni o envolvia cuidadosamente com uma manta. O nariz dele encontrava-se torto e o rosto meio inchado do lado direito. Um olho roxo.

— Não devia ficar desse jeito no frio. Pode acabar morrendo.

///

...eu o amo, senhoras e senhores.

Riam, debochem, apontem.

Façam isso, eu sei que mereço.

Mas eu o amo, o que posso fazer?

Como não amar aquele par de olhos negros que conseguem fazer a vida parecer boa?

///

Se eu morresse, tudo seria melhor.

— Não diga algo assim, Rae-Rae.

Ele estava debruçado, secando carinhosamente seus pés. Raven não disse mais nada.

Puxou-o para a cama, deitando-o nela.

Giovanni sentiu quando ele começou a abrir sua calça e de repente imaginou a cena de seu corpo sendo violado mais uma vez. Fechou os olhos, antecipando a dor que viria em seguida.

Mas Raven apenas beijou-o na testa e pôs algo em sua mão. Um canivete. Então levou o punho fechado do rapaz que empunhava a lâmina até seu pomo-de-adão.

Recobre sua honra. Corte.

Os olhos do rapaz se arregalaram, mas ele não conseguiu afastar a lâmina meio enferrujada da pele pálida do outro. Podia ver com perfeição a jugular pulsando.

Não se preocupe: se você cortar vai interromper o fluxo de sangue para o cérebro e eu vou morrer bem rápido... ao menos mais rápido do que se fosse cortando em outro lugar. Enfiando bem fundo o canivete, você vai danificar minhas cordas vocais e nem vai me ouvir gritar. Vamos, faça. Juro que não vai ser doloroso pra mim.

A mão do jovem tremia, mesmo que Raven a segurasse. Usando toda a sua força, ele apontou a arma na direção do próprio pescoço.

— A única garganta que vai ser cortada se você continuar falando isso vai ser a minha. Então pare agora mesmo. — disse com firmeza.

Você tem certeza disso?

— Sim.

Então... vai ter de me perdoar.

Suas calças foram arrancadas.

Um dejá vù, senhoras e senhores...

Entretanto, foi Raven quem se despiu lentamente, exibindo o corpo delgado e pálido demais para ser agradável olhá-lo, com algumas sardas espalhadas pelos ombros e cicatrizes que se assemelhavam a marcas deixadas por garras, próximas do umbigo.

Ele apoiou-se com as mãos espalmadas no peito do mais novo e com uma careta de dor, deixou-o penetrar seu corpo com extrema dificuldade. Pois doía. Doía como o inferno aquela droga!

Suas unhas longas acabaram arranhando um pouco a pele de Giovanni, mas este não parecia se importar, tão imerso no paraíso encontrava-se.

“Ah... quente”, era a única coisa em que pensava. “E apertado pra caralho...” O corpo de Raven, sempre tão frio e às vezes escorregadio como o de um réptil agora suava e aquecia-se, assumindo temperatura e textura deveras agradável.

— Rae-Rae... é... é tão bom.

Você acha? — os lábios finos contorceram-se numa careta novamente e ele aproximou seu rosto ao do rapaz — Isso se chama “pecado”. Já ouviu falar?

— Não, isso é... amor! — agora ofegava rapidamente, agarrando a cintura reta do homem, aumentando a velocidade com que ele se movia sobre seu corpo. — Te quero tanto, Raven... Tanto!

E conseguiu mudar de posição, ficando por cima do corpo maior que o protegera durante toda a vida. Aquele corpo que o encantava, que passara a ser sua principal fonte de sonhos eróticos durante a adolescência...

— Tão... lindo! — falava fascinado, deslumbrado, apaixonado. E por fim, quando o momento estava cada vez mais próximo, enterrou-se até o fundo e deixou seus lábios roçarem suavemente na boca mortífera do Nevasca, chegando mais próximo de um beijo do que jamais teria em toda a sua vida.

Vou parar no Inferno depois disso — Raven deixou escapar, enquanto arranhava as costas do rapaz que um dia havia jurado proteger. Como fora parar ali, naquela cama? — Vou ser atirado no mais fundo poço do Inferno e lá vão me esquecer...

— Você é tão contraditório! — comentou Giovanni meio sem ar, ainda com o corpo unido ao de Raven. O orgasmo... fora ótimo. — Diz que não acredita em Deus, mas depois fala em Inferno...

Aquilo que a palavra “Inferno” designa pode ser muito mais do que um lugar no subterrâneo que arde em chamas e tem cheiro de enxofre, dominado por homens de chifres e tridentes malignos. Assim como existem formas e formas de se morrer. Posso matar qualquer um, mas ninguém pode me matar. Exceto você. Sinto que apenas você pode derramar meu sangue... e é isso o que acontecerá no final, tenho certeza.

— Nada disso jamais terá um final, Raven. Agora cala a boca e dorme.

Me perdoe.

— Não há nada a perdoar, Rae-Rae.

Prometo não fazer de novo; não me contive. Perdão.

— Tudo bem. Sério. Agora durma, por favor.

Giovanni?

— O que foi?

Os braços o apertaram mais um pouco. A boca estava contra seu ouvido.

Doeu muito quando eu fiz com você?

— Não.

Tem certeza?

— Certo, doeu muito. Doeu mais do que um ferimento de bala.

Eu sei como é...

— Eu machuquei você?

Já aguentei castigos piores. — Raven murmurou — Mas tenho que admitir que seu castigo é bem... grande.

Giovanni deu uma risada sem-graça, pois sabia exatamente do que ele estava falando. Raven, ainda sério, acariciou um pouco seus cabelos.

Isso não foi nada, ok? Não temos uma relação... desse jeito. Não posso ser o homem que você precisa.

— Você tem tudo o que eu preciso. E mais um pouco.

Não sou gay.

— Essa afirmação foi a coisa mais estúpida que você já disse.

Eu sei.

Giovanni acabou sorrindo.

Sinto por não poder te fazer feliz. Foi apenas instinto. Eu... queria proteger você. Ou talvez apenas me aliviar. Não sei. Não nutra esperanças. Acabe com esse sentimento. E vamos esquecer o que aconteceu aqui, garoto.

O sorriso sumiu.

Raven empurrou de cima dele, desencaixando-se com cuidado e fazendo uma última careta de dor. Ele levantou e dirigiu-se para o banheiro, pela segunda vez na vida, sêmen escorrendo pelas pernas. Mas dessa vez... até que não havia doído tanto.

Boa noite.

Encarando as costas pálidas do mais velho, o rapaz não respondeu.

A propósito... feliz aniversário, baixinho.

A porta do banheiro se fechou e ele ficou sozinho com os próprios pensamentos.

///

Giovanni levantou-se rapidamente ao ver Raven adentrar seu quarto, liberto (bem... na verdade, mais ou menos, pois ainda haviam algemas em suas mãos, mas a focinheira e as correntes nos pés haviam sumido).

Abraçou-o como se não o visse há anos.

— Está tudo bem?

— Tudo bem. — confirmou o homem, vazio. — Vamos embora agora.

— Pra onde? O que Moskov falou pra você?

Vou te contar tudo pelo caminho. Por enquanto, apenas me siga...

Como um bom menino, o hispânico caminhou ao lado do sujeito pálido, atento a tudo ao seu redor, principalmente aos guardas de olhares nem um pouco amistosos que os acompanhavam até a saída do lugar.

//-//

Seu demônio fracassado...

Você vai tentar concertar seu erros, mas sabe que é impossível obter perdão para sua alma imunda.

Pelo menos... busque perdão para a criança.

A criança... a criança merece pelo menos isso de você.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

The Raven Song - Capítulo 3

Capítulo III: Quando os Demônios...

Parte 1: ...Vendem Suas Almas

Moskov saiu do elevador batendo os saltos no chão com ruidosos toc-toc e ao alcançar a “Área Especial” (onde costumava-se prender os prisioneiros homicidas e os esquizofrênicos) passou seu cartão de identificação na porta, entrando definitivamente na Zona Proibida.

Esse olhar... quantas vezes já não o vi? Aquele olhar que diz o quanto você é um animal, um lixo, um verme... Sim, eu sei que sou tudo isso, Tenente, mas o que posso fazer? É a minha natureza morder quando você menos espera. É a minha natureza correr atrás desse olhar, porque é ele quem me alimenta...

— O Sr. Morrys está bem? — questionou nervosamente para o guarda que tomava conta da sala acolchoada feita exclusivamente para os prisioneiros que não tinham um parafuso muito preso... Se é que conseguem entender, senhores.

— Está vivo — foi a resposta pouco animadora que recebeu. O rapaz de cabelos curtos e claros parecia nervoso em ter de ficar ali.

— Abra a porta para mim, meu jovem.

Seu asco apenas comprova o meu sucesso em ser um monstro.

Ele me satisfaz profundamente.

— O que?! Mas, Tenente...

— Nada de “mas”! Abra logo essa porta ou vou mandá-lo limpar as latrinas do banheiro masculino por um mês e será com sua escova de dente!

O guarda, mais nervoso do que nunca, digitou a senha que abria o “quarto-dos-malucos” e empurrou a porta para que Moskov pudesse ver seu mais novo e mal-comportado prisioneiro.

Um vidro à prova de balas separava a entrada da verdadeira porta que dava para o quarto acolchoado e o guarda também tratou de que este subisse para que a Tenente pudesse passar.

— A senhora tem mesmo certeza disso? — indagou com suor escorrendo pelo rosto.

Você tem medo de mim. Isso é agradável.

Você me odeia. Isso é um fato.

E apenas se odeia com real convicção nos outros, aquilo que queremos esconder em nós mesmos...

Ela simplesmente assentiu e a porta da sala acolchoada foi aberta.

Sentado no canto esquerdo com uma expressão de sublime serenidade, estava Raven.

Alguns guardas realmente corajosos haviam conseguido colocar-lhe a camisa-de-força, mas ele logo arrebentara a lona e transformara-a em um casaco estranho, amarelado, com fivelas quebradas balançando pelos lados. Quando voltou seu rosto quase lupino para a mulher, ela percebeu (com o estômago revirando-se e o vômito pedindo passagem por sua garganta) que a boca e o queixo dele estavam sujos de sangue e que de seus dentes (exibidos no mesmo sorriso debochado, sarcástico, que ele dera ainda na sala) pendiam finos pedaços de carne, assim como mais sangue ainda.

Engane os outros, Tenente. Coloque sua máscara, isso mesmo. Não faz diferença pra mim. Eu sei o que você é e você também sabe.

Você é tão suja quanto eu.

Acha que não reparei nas marcas roxas no seu pescoço, vagabunda? Ou nos seus olhares para aquele fardado cópia do “Scarface”?

Suas tentativas de esconder a ambos foram falhas... Ou será que não seria seu desejo que todos reparassem que você anda empinando o rabo para um dos seus homens?

, é mesmo uma piranha...

Quando se faz um trato com um Nevasca, Tenente Moskov — começou com um tom que indicava o princípio de uma risada (e era muito melhor que ele apenas ficasse na vontade, pois se realmente se atrevesse a rir, ela seria capaz de dar-lhe um tiro no meio da testa) — você automaticamente faz um trato também com o próprio Diabo. É melhor ir se preparando, pois isso é apenas o começo.

— Feche essa porta. — a mulher ordenou para o guarda. E ao vê-lo hesitar, perdeu o controle. — Feche logo essa porta, caralho!

Raven erguera-se e agora caminhava lentamente na sua direção. A porta tornou a mover-se automaticamente para impedir a passagem dele, mas o Nevasca colocou o pé antes que ela o trancasse lá dentro.

Você não pode fugir de si mesma.

E eu sou a verdade que vive dentro de ti.

Por isso... corra enquanto pode. Pois eu vou te pegar um dia.

Moskov tinha noção de quanta força era precisa para manter aquela porta aberta e quando ele começou a afastá-la, tentando sair, ela correu com o guarda em seus calcanhares, fechando a parede de vidro blindado que separava a porta de saída da porta da sala acolchoada.

Sem parecer abalado, Raven bateu com ambos os punhos no vidro e um som crocante pode ser ouvido quando a superfície rachou um pouco na parte que ele atingira. Talvez ficasse batendo ali o dia inteiro sem conseguir fugir, mas algo dizia a Tenente que ele não pretendia fazer isso.

O sorriso sangrento só queria dizer uma última coisa para ela:

Vou te fazer se arrepender de ter feito um trato comigo, puta.

E como vou...

Parte 2: ...Amam

Giovanni estava um pouco melhor com os curativos que a enfermeira fizera. Entretanto, eles não eram como os que Raven fazia. Os que Raven fazia quase sempre não duravam nem três dias, pois havia alguma coisa nas mãos do homem que era... mágica.

— Sr. Puente vamos precisar muito da sua ajuda.

Ele ergueu os olhos confuso para a Tenente Moskov — esta carregando uma expressão séria no semblante.

— Por quê?

— Porque seu amigo, o Sr. Raven, acabou de aleijar um dos meus guardas. E não estou falando de um braço ou de uma perna...

— Então onde foi?

— Digamos que seu amiguinho fez uma vasectomia de forma invejável.

— Raven não ataca sem que alguém o provoque. — retorquiu o espanhol

Moskov pensou na fita da câmera instalada no elevador. O guarda havia passado a mão na bunda do Nevasca e perguntado de forma sacana se não podia divertir-se um pouco com ele, afinal de contas “a bichinha chorona com quem ele devia trepar, se desmaiava com um choquezinho de nada, na certa não lhe dava o prazer que ele merecia, não era macho o suficiente”.

— Além do mais, aquele cara me machucou. E isso Raven não aceita.

— Vocês por acaso tem alguma coisa? Algum relacionamento sexual?

— Não!

— Olha, não adianta tentar mentir pra mim. Eu vou descobrir a verdade sobre a relação de vocês.

— Eu não estou mentindo.

— Acha que não reparo a forma como ele olha pra você?!

— E que forma é essa?

— Como se... como se fosse capaz de fazer qualquer coisa por você. Nem mesmo meu ex-marido me olhava daquela forma.

— E daí?

— Daí que vocês são homens, pelo amor de Deus! Um homem olhar assim pra outro...

Um sorriso pequeno surgiu nos lábios do rapaz.

— Então acha que só porque somos muito ligados isso nos obriga a manter uma relação íntima?

— Acho! — ela aparentava muita firmeza no que dizia.

— Então... acha que somos gays?

A Tenente abriu a boca para responder, mas...

Olhando bem para aquele sujeito, ele não parecia nem um pouco efeminado. Haviam cinco cicatrizes enormes em seu rosto, uma delas repuxava o canto de sua boca num sorriso vazio ao mesmo tempo em que encovava sua bochecha esquerda. Queimaduras horríveis começavam no lado direito de seu rosto bem no queixo e acabavam no couro cabeludo, fazendo os fios rarearem ali. Com ele sem camisa, Moskov também reparava no peito coberto de pelos e mais cicatrizes/queimaduras.

Aquele sujeito não parecia ser gay. Quer dizer, todos os gays que vira até hoje pareciam um bando de mulherzinhas, além de serem bem egocêntricos.

Ou seja, ela poderia considerar que Raven...

Se bem que olhando bem para ele também... Raven só parecia frágil próximo do espanhol. Quando o viu sentado na sala acolchoada, sozinho, Moskov notou o quanto era másculo com aqueles ombros largos e os olhos claros, investigadores. O queixo pontudo e o nariz nobre complementavam o rosto conferindo-lhe uma aura de mistério. Na verdade, ousava até mesmo a dizer que a presença dele fizera um calor molhado surgir no meio de suas pernas...

“Que raios estou pensando?”, ela questionou a si mesma, suando frio. Então lembrou do relatório que recebera do laboratório dizendo que determinados fatores nos Nevascas poderiam causar... “reações estranhas” nas pessoas comuns.

— Eu não sei. As aparências enganam.

— Só temos um ao outro. Desde sempre. Meus pais morreram muito cedo. Raven me salvou da morte, ele me deu uma nova vida... Você não tem ideia do quanto ele fez por mim...

Então, acabou sendo levado na onda das memórias, aquelas criaturinhas perigosas e de dedos hábeis que agarram nossas mentes e nos transportam para lugares que às vezes gostaríamos de esquecer.

/////

Ele, Giovanni, tinha 11 anos.

A vida não estava sendo muito generosa, dando-lhe apenas um corpo magro e minúsculo, muito diferente do que viria a adquirir na chegada dos famosos dezesseis...

Mas, por enquanto, era apenas um moleque baixinho, raquítico. Saúde frágil. Enfim...

Tanto Raven quando o garoto estavam parados próximos de uma barraca de frutas. Com um sinal de cabeça do mais velho, ele passou a encher uma sacola de papel rapidamente com maçãs e laranjas. Tudo teria dado certo se... um cão imenso não tivesse aparecido rosnando para ele.

No início, até tentou acalmar o bicho, mas era impossível. Achando que ia ter um braço arrancado ou coisa parecida, ele se pôs a correr desesperadamente — e ainda bem que pelo menos sua estrutura corporal lhe permitia correr feito um desvairado, porque nem gostaria de imaginar o que aquela boca cheia de dentes teria feito com seu traseiro. Não encontrando o traseiro, porém, o cão não desistiu e arrebentou a sacola, fazendo seu conteúdo rolar pelo chão, atraindo um grupo de mortos de fome que atirou-se ali, brigando pelas frutas como animais selvagens.

Recostando-se numa parede de tijolos depois de fugir ele inclinou a cabeça para trás e respirou o ar em golfadas. Saltou quando uma mão pousou em seu ombro, mas era apenas Raven, o ar taciturno de sempre e a roupa de violinista de rua, puída, ainda assim perfeitamente ajeitada, como se ele não tivesse corrido atrás do garoto e sim caminhado.

— Desculpe, Raven! — sentia-se imensamente envergonhado por não ter tido capacidade para roubar as frutas que serviriam de jantar para ambos.

O mais velho simplesmente suspirou e tirou duas peras de dentro do paletó negro e remendado que usava. Eles as jogou para o menino e apanhou o estojo com o violino no chão, começando a caminhar encurvado, uma postura típica que ainda lhe renderia boas dores quando envelhecesse.

— Vamos logo antes que os guardas apareçam.

— Você não vai comer, Rae... Raven? — corou mais ainda, percebendo que o chamaria pelo bendito apelido. E isso seria duplamente vergonhoso, pois desde que entrara no período da pré-adolescência não conseguia pronunciar aquela palavrinha infantil, acreditando que ela... Melhor seria não pensar naquele assunto agora... Raven poderia “ler sua mente”.

— Não. Você está em fase de crescimento. Precisa se alimentar.

— Só vou poder me alimentar se tiver você aqui, mas se morrer de fome como isso vai acontecer?

— Parece que alguém anda querendo bancar o espertinho pra cima de mim, não é?

— Eu não...

— Eu sou o mais velho então dou as cartas por aqui, garoto. E se eu digo que você vai comer tudo isso, então você vai comer tudo isso! Entendeu?

— Sim, Raven. — baixou a cabeça, sabendo que jamais seria capaz de desobedecê-lo.

Os dois caminhavam em silêncio até Raven passar o braço em torno dos ombros do menino que era vários centímetros mais baixo que ele.

Se você comer tudo vou te ensinar aquelas técnicas de luta.

— Jura mesmo?! — os olhos negros (e que o perturbavam profundamente) brilharam e um pequeno sorriso surgiu nos lábios finos e rachados pelo frio do rapaz mais velho.

Claro que sim... Mas só se comer tudo...

//////

— Não tente me distrair com suas histórias! — a mulher apontou o dedo em seu rosto. — Você vai me falar o que eu quero ouvir nem que seja na marra, senhor!

— E o que você quer ouvir?!

— Quais são as fraquezas dele? Do que ele tem mais medo? Onde ele se “machuca” caso alguém o “cutuque”?!

— Raven não tem fraquezas visíveis. Ele não teme a dor ou o sofrimento... Apenas uma coisa o torna mortal como qualquer outro.

— E o que é? Alguma substância específica? Algum trauma? Algum... abuso?

Os olhos de Giovanni tornaram a vagar; era fácil que tal ocorresse por conta do déficit de atenção...

/////

— Quem é o garoto? — perguntou o homem com a mão pousada sobre a pança monstruosamente grande. Quando ele ergueu o braço para apanhar uma caneca de cerveja oferecida pela garçonete usando um short minúsculo enfiado na bunda, Giovanni conteve-se para não vomitar diante da imagem das estrias esbranquiçadas em sua carne flácida.

Ninguém da sua conta — foi a resposta ríspida de Raven. — Onde está o dinheiro?

O gorducho estalou os dedos e alguém estendeu-lhe um maço razoavelmente grande com notas de cem. Ele passou as notas na frente do Nevasca e este agarrou-as, contando minuciosamente.

Pra um começo até que está bom. Quero o dobro disso quando terminar.

— Acho que você cobra bem caro pra fazer esse... “serviço”.

Eu não trabalho com isso... Não gosto de gente mandando em mim, mas alguém precisa trabalhar. — os olhos verdes pousaram em Giovanni e ele tirou algumas moedas do bolso do colete, passando-as para as mãos do garoto de 14 anos. — Vai comprar umas balas enquanto eu resolvo isso.

Ele estremeceu. Não queria se afastar do mais velho. Aquele lugar cheirava a drogas e prostituição, como ele poderia ficar sozinho? E se alguém tentasse alguma coisa? Mesmo querendo não admitir, ele jamais conseguiria se defender por conta própria... Só estaria seguro perto de Raven!

— Mas...

Está tudo bem, Vanni. Eu e o Sr. Gonzalez temos assuntos de adulto para tratar... Isso vai ser bem chato pra você, vá se divertir um pouco; algumas meninas estão louquinhas pra ficar contigo... Mas não vá deixar nenhuma arrancar suas calças, hein moleque?!

O garoto assentiu, o punhado de moedas sendo apertado firmemente por seus dedos desajeitados. Não pretendia, no entanto, perder aqueles dois de vista.

Por quê?

Bem, digamos que jamais Raven o tivesse chamado de “Vanni”. Nem mesmo nos momentos em que ele acordava gritando por conta dos pesadelos que ressuscitavam seu passado do caixão anônimo no qual fora enterrado, o mais velho o chamara daquela forma.

Recostou-se no balcão do bar observando o homem alto e pálido parado diante da mesa, aparentemente conversando com o cara obeso. Então, o sujeito levantou da cadeira, cambaleante, contornando a mesa com extrema dificuldade por conta de sua composição física semelhante a de uma bola de boliche. Percebeu, sombrio, que eles moviam-se na direção das escadas de degraus que rangiam violentamente, subindo para onde ficavam os quartos daquela casa de massagem barata.

Sem hesitar, correu na direção deles, passando por garotas que sentavam na cara de homens bêbados e uma banda de leprosos cantarolando alguma canção dos Rolling Stones. Ironicamente, era “Don’t Stop”.

Quando chegou no topo da escada, parou e virou-se, vislumbrando uma bunda gorda sumir no final do corredor. Correndo, o jovem parou, ofegando diante da porta que fechava-se na sua cara apaticamente.

Raven dissera mais cedo que eles iriam até ali para conseguir dinheiro suficiente para tratar sua doença. Uma doença estranha, mas que vinha proliferando-se como uma praga nos últimos meses, que os médicos haviam, ironicamente, apelidado de “A Morte Rubra”. Ela o fazia por vezes dobrar-se sobre o próprio corpo, tossindo com tanta violência que o sangue saía, maldito... rubro...

Giovanni já não era mais tão ignorante quanto ao que o mais velho fazia. Roubar frutas na feira não era o pior crime que ele já cometera. Raven já matara pessoas... Antes mesmo de matar os mendigos que destruíram sua família ele já havia matado incontáveis vezes...

E era exatamente isso o que ele ia fazer. Na certa, o gorducho o contratara para eliminar alguém e ambos discutiriam isso no quarto, onde nenhum policial disfarçado de ébrio poderia ouvir. Mais uma vez, Raven estava indo contra a lei apenas para salvá-lo.

Sentando no chão, o garoto resolveu esperar, mesmo que depois levasse uma bronca. Durante dez minutos ficou ali e de vez em quando ouvia sons abafados, como se alguém estivesse batendo com um socador num travesseiro, na certa vindo do quarto em frente. Quando tudo ficou em silêncio, o gordo abriu a porta abruptamente, saindo de dentro do quarto com um sorriso na cara. Apesar de ter esbarrado nele, o homem não o notou: Aparentava mais preocupação em fechar o zíper da calça do que dar-lhe atenção.

Hesitante, o garoto enfiou a cabeça pela fresta da porta, avistando Raven sentado na cama. Ao aproximar-se, notou algo errado...

As roupas dele estavam espalhadas pelo chão.

Por que Raven tiraria a roupa na frente daquele cara?

O rapaz levantou da cama, o lençol em torno da cintura. O lençol estava manchado de sangue.

Por que diabos o lençol estava manchado de sangue?!?

— Raven...? — nesse instante, jurou não reconhecer sua voz tão fina e fraca encontrava-se.

Ele o encarou, os olhos claros vazios.

Devia estar comprando balas, garoto...

Lágrimas reuniram-se nos olhos negros. De repente, em sua cabeça, quase pode ouvir o som de uma superfície de vidro estilhaçando-se...

Aquilo era o que restava de inocência dentro de si... morrendo.

— Aquele... aquele cara te machucou, Raven... Você tá... sangrando... Meu Deus, VOCÊ TÁ SANGRANDO, RAVEN!

Mas Raven parecia bem alheio a qualquer sangramento, até mesmo a dor que deveria estar sentindo.

Eu disse pra você que isso era assunto de adultos. Você não devia estar aqui, Giovanni.

— Raven... — definitivamente, ele não era mais tão inocente — você transou com aquele cara? Você é... gay?

Não.

— Pra qual pergunta?

Para a segunda, óbvio!

O silêncio foi desconfortável. Giovanni não conseguia tirar os olhos do rosto inexpressivo do mais velho. Era aterrorizante. Sentia que estava sufocando naquele quarto com o cheiro de sangue e sexo se misturando. Ao tentar encarar outro ponto que não fosse aquele semblante pálido, percebeu que haviam marcas roxas pelo abdome e pelos braços dele.

O maldito batera em Raven.

Ele te estuprou?! Como pode deixar algo assim acontecer, Raven?! Você é muito mais forte que...

Olhe bem o tom que está usando comigo, moleque! — ele rosnou um pouco e em seguida prosseguiu: — E sexo consentido não é estupro.

— Mas Raven... — agora seu coração estava pesado. Então isso queria dizer que o seu heroi havia...?

Sim, eu agi como uma puta. — ele respondeu lendo seu pensamento.

— Por... por que fez isso? Por que... fazer uma coisa dessas?!?

O dinheiro.

Ele não queria mover a cabeça, mas acabou virando-a para onde Raven apontava. Em cima de um criado-mudo dois maços grossos de notas de cem repousavam, iluminados de forma um tanto quanto diabólica pelo abajur. Mas era apenas impressão de sua mente confusa — só poderia ser...

— Por que não roubou?! — ele agarrou os próprios cabelos, como se isso fosse evitar as lágrimas e os soluços de saírem — Por que não matou aquele cara e roubou o dinheiro dele?!

Ele é um dos cafetões mais famosos da cidade. Se eu o matasse meio mundo viria atrás de nós. Não valia a pena.

— Então você resolveu dar o cu pra ele como forma de ganhar o dinheiro?!

Ele preferia que tivesse sido você no meu lugar — aqui, a boca do jovem escancarou-se, tão horrorizado estava. O tom do Nevasca não deixou de ser indiferente um único segundo. — Mas eu jamais permitiria que aquele velho nojento tocasse em você.

— Então você foi no meu lugar?

É o que parece.

— EU PREFERIA MORRER ENGASGADO COM MEU PRÓPRIO SANGUE DO QUE VER VOCÊ FAZER ISSO CONSIGO MESMO!!!!!

O tapa doeu. Não porque foi forte e sim porque Raven nunca o batera na vida, ao menos não a sério, pois no treinamento constantemente ele “levava uma surra”. Aquele era o primeiro tapa sério e ele não sabia como reagir.

Nunca... — a inexpressividade sumia, dando lugar a um sentimento de imensa tristeza — diga que preferia morrer. Nunca.

— Raven... olha o que ele fez com você! Ele... ele... Raven, você tá sangrando... — quanta vontade não sentira de descer as escadas e matar aquele viado obeso? Muita, nem saberia definir o ódio mortal que instalava-se na sua cabeça. Irônico, anos depois, analisando bem aquela questão... sentia-se como um vingador cobrando a honra perdida de sua donzela amada... que no caso era um homem, mas isso... era apenas um detalhe.

Eu não ligo! O meu corpo foi criado pra aguentar castigos piores. Mas o seu não. Se não fizer o tratamento rápido pode estar tudo acabado. Eu não tinha tempo para roubar bancos, sequestrar pessoas em busca de resgates ou fazer outra coisa... Os tiras nessa cidade estão em todo lugar e logo nos capturariam... Os trabalhos honestos? Rá! Os poucos para os quais eu teria chance de receber um salário não seriam o suficiente para cobrir um quinto do seu tratamento então... eu apelei pra isso.

Giovanni sentia que alguma coisa estava entalada em sua garganta. Percebeu que era um grito. Soltou-o furiosamente, caindo de joelhos.

— A culpa é minha! Toda minha!

Pare de dizer essas coisas!

Raven queria muito acalmá-lo, mas não o tocaria naquele momento. Não com o gozo do cafetão filho-da-puta escorrendo pelas pernas junto com seu próprio sangue. Não... não iria maculá-lo... mais.

Eu vou tomar um banho. Preciso me limpar. Espera aqui... Faça o que eu mando dessa vez, só pra variar.

O garoto estendeu a mão e segurou o pulso fino dele, impedindo-o de andar. Levantou com dificuldade e depois de engolir algumas vezes em seco (parecia que havia uma bala de canhão escorrendo dentro de si), conseguiu dizer:

— Eu... eu te ajudo, Rae-Rae.

E o mais surpreendente é que, apesar disso, quem tinha o olhar de piedade não era Giovanni, e sim Raven.

Afinal, seria a vida tão cruel a ponto de criar uma criatura tão boa quanto aquela, tão pura... apenas para fodê-la no final de tudo?

Não, baixinho. Você já fez demais por hoje.

Os apelidos. Ah... quantas saudades não sentia deles? Muitas. Era como ouvir seu filho te chamar de “papai” de novo depois que ele aprende que “coroa” é muito mais interessante.

— Está doendo muito?

— Acho que desloquei as costas, mas amanhã vai estar melhor. Meu corpo é rápido pra se curar, você sabe.

— E essas marcas? Ele... te bateu muito?

Já apanhei mais no reformatório, não se preocupe. Comparado com o Canibal, esse cara tinha “mãos de moça”.

Apesar de terem começado a rir (meio forçadamente), logo o jovem recomeçara a soluçar.

— Desculpe, Rae-Rae...

Não há nada para perdoar, baixinho. Eu... — pela primeira vez, Raven parecia sem-graça — Esquece.

— O que foi?

Estou... me sentindo um pouco tonto. Acho que é por causa da perda de sangue. Poderia me levar pro banheiro... por favor?

Sem hesitar o garoto o fez passar o braço em torno do seu pescoço e o levou cuidadosamente para o pequeno espaço dentro do quarto em que havia um boxe e uma privada sem tampa.

Ao tirar o lençol manchado, pela segunda vez na noite, conteve-se para não vomitar, dessa vez diante da imagem dos líquidos vermelho e branco escorrendo pelas coxas alvas do melhor amigo.

“A culpa é minha”, foi a única coisa que conseguiu pensar. A água foi ligada. O corpo de Raven começou a ser lavado. O sêmen e o sangue desciam ralo abaixo. “É toda minha...”

////

O rapaz ficou em silêncio olhando para as próprias mãos pousadas no colo.

A Tenente Moskov de repente se deu conta de que não sabia o que dizer; Raven fora capaz de vender o próprio corpo... só pra salvar a vida dele? Isso não... fazia sentido...

Raven era um psicopata, um louco...

Como...?

— Ele me ama. E eu amo ele. Essa é a única verdade, senhora.

////

Depois que os guardas levaram Giovanni embora, Moskov sentou na maca em que ele estivera e apoiou a cabeça nas mãos.

Se tudo o que ouvira era verdade... Então seria realmente muito difícil lidar com aquele homem.

Ou talvez... não.