quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Sakura Ai

SAKURA AI

Eu era um sapo.

Não, não estou de brincadeira.

Eu era mesmo um sapo.

Um sapo com direito a pele esverdeada, gosmenta e escorregadia, cheia de verrugas.

Caminhei durante tempo indeterminado por uma estrada em que só podia pisar nas pedras azuis e não nas vermelhas. Não era algo que alguém tivesse me dito, no entanto, era algo que eu apenas sentia que deveria ser feito. Meus pés com dedos ligados por membranas deixavam uma trilha de muco por onde passavam.

O mundo era branco, exceto pela estrada de pedras azuis e vermelhas. A cada gosmento passo dado, ele parecia pintar a si mesmo, formando uma paisagem rústica, selvagem. Quando estava apoiado em apenas um pé, uma planta carnívora pulou (literalmente, pois possuía patas de canguru no lugar de raízes) pra fora de uma poça de tinta formada pelo pincel que desenhava o lugar e me engoliu.

Fui jogado no meio do Universo e pude ver explosões de milhares de estrelas que haviam existido e morrido para o nada. Flutuei por segundos ou horas, não fazia diferença. A propósito, eu ainda era um sapo. Queria gritar, mas a única coisa que consegui foi encher de ar aquela pele elástica e nojenta que anfíbios saltadores como eu sempre tem no pescoço. Decidi ficar em silêncio depois disso.

Flutuar estava realmente tedioso e as explosões constantes das estrelas não me assustavam mais: nenhuma delas me faria mal.

Como se tivesse expressado verbalmente minha insatisfação, o som de algo se partindo pode ser ouvido. Olhei para trás e vi que o tal Universo era apenas uma grande pintura de vidro e alguém lhe acertara com uma marreta. Pedaço por pedaço, mais rápido do que eu gostaria, as lascas cortantes caíam em espiral, juntamente comigo, como se tivessem dado a descarga. E eu ainda era um sapo.

Caí de cara no chão. Dolorosamente real para um sonho comum.

Pensei que daquela vez o meu nariz estava fodido, mas então lembrei que os sapos não quebram o nariz e isso me deixou um pouco feliz.

Levantando, olhei ao meu redor e vi aquilo que parecia ser um santuário. Havia uma garota de pele morena com cabelos negros que pareciam ser quase do seu tamanho no meio dele. Usava um quimono branco e flutuava meio metro acima do chão com braços e pernas abertos em posição “estrela-do-mar”. Senti um arrepio ao vê-la.

— Sapinho? Ei, sapinho! — disse uma voz brincalhona atrás de mim.

Ao me virar, notei estranho indivíduo sentado nas raízes de uma árvore cinzenta e morta. Não me aproximei dele.

“O que você quer?”, ia dizer, mas então tornei a fechar a boca, lembrando daquele estranho movimento que fazia minha garganta inchar.

— Dezenove é o número, velhinho! — continuou a coisa encolhida e risonha — O bom SK já dizia, não é mesmo? Um carro bate. Ele faz KA-BLAM ou seria esse o som de uma bala disparada? A garota, a garota, a garota, a garota, A GAROTA, sapinho! Dê seu sangue para a garota, só você pode salvá-la...

Então, a criatura saltou das sombras como aquela planta carnívora e eu recuei, apavorado. Tratava-se de uma mulher com as pernas amputadas um pouco antes dos joelhos. Sangue pingava dos cortes infeccionados. Ela me deu um sorriso e pude reconhecer seu rosto através dos chumaços loiros de seu cabelo.

Mana? É você?”

Vestia-se como uma boba da corte. Parecia feliz, pois gargalhou em dado momento (talvez antes ou depois de eu ter caído com o traseiro no chão feito um mongol).

Ela disse alguma coisa, mas essa parte foi cortada radicalmente de minha memória. Na verdade, o que lhe conto agora são fragmentos. Curtos trechos de uma alucinação confusa. Talvez aquela batida com a cabeça na calçada tivesse, afinal, surtido efeito.

O momento do qual me lembro se passa depois dela ter cortado o próprio pescoço e morrido a gargalhar no próprio sangue. Lembro que vi

(BALANÇOS CANTANTES! SIM, BALANÇOOOOS CANTANTES, MEU RAPAZ!)

cada gota vermelha ser sugada para dentro da terra por flores cinzentas que pareciam vagamente com aspiradores de pó. Aspiradores de pó do mal. Depois de beberem o sangue da minha irmã elas se enrijeceram como alguém que acaba de acordar e ao relaxarem ganharam uma bela tonalidade de rosa.

Sakuras?

Pareciam muito com sakuras.

Um vento começou a soprar suavemente quando tentei me abaixar para colher uma das flores. Minha mão verde foi impedida por um sussurro sem som. Um sussurro desses que às vezes fala dentro da gente, sem que saibamos muito bem como.

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O rosa do SA-KU-RA

É do sangue de SA-RA...

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Minha mão ricocheteou nesse segundo e aterrorizado com aquilo que lembrava em muito uma canção perversa cantada na quarta série por meus colegas de classe não-tão-adorados-assim, corri para o templo sombrio.

A garota de quimono branco continuava flutuando meio metro acima do chão. Aproximei-me hesitante e tive consciência de uma coisa: Nunca, na vida, tivera o vislumbre de garota tão bonita quanto aquela. Sua pele contrastava com a ausência de cor de sua vestimenta e os cabelos escuros pairando ao redor de seu corpo se moviam lentamente da mesma forma que a maré branda. Desejei tocá-la, mesmo que por breve período de tempo.

Mas como algo me impedia, o destino conspirou (ou talvez fosse apenas meu inconsciente), mais uma vez e logo me via agarrado pelo punho ossudo da garota. Ela virou seus olhos vidrados para mim e sussurrou num fio de voz:

— Estou com fome.

Ia lhe dizer para esperar que logo eu voltaria com alguma comida (apesar de não fazer a menor ideia de onde poderia arranjá-la, na verdade queria apenas, desesperadamente, agradá-la), mas antes mesmo que pudesse me recordar que não poderia falar absolutamente nada, suas mãos me apertaram mais e nossos lábios quase se coloram com sua aproximação repentina.

— Tudo bem — continuou olhando no fundo dos meus olhos. Seus próprios orbes eram tão escuros que mal se via as pupilas — Seu coração deve servir. Posso comer seu coração, sapinho?

Assenti.

Lembro de senti-la pousar as mãos espalmadas em meu peito verde e então seus dedos suaves se enterravam na minha pele, rasgando-a, arrebentando músculos, vasos sanguíneos, pulmões e então... ela tornou a fechar meu tronco e levou as mãos aos lábios, trêmula. Tudo aconteceu em poucos segundos.

— O sapinho não tem um coração. — disse sem ar.

Ela se afastou e...

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BRANCO

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BRANCO

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BRANCO

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DOMINÓ

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BRANCO

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BRANCO

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BRANCO

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— O que você está fazendo aí?

Eu abri os olhos. Primeiro, via apenas coisas rosas balançando no ar. Depois, minha visão foi se adaptando com a claridade do lugar e percebi que se tratavam de flores. Quando sentei, reparei que haviam mais flores como aquelas espalhadas pelo chão (Sakura?)

Ah, sim, também reparei que não era mais um sapo.

Agora eu era apenas eu, usando um macacão jeans e uma camisa de manga comprida cinza que, estranhamente, parecia uma versão adolescente de uma roupa que usava quando bebê.

— Ei, garoto! — tornou a dizer a voz.

Sua dona era a tal menina que tentara devorar meu coração.

Os olhos dela não mais estavam vidrados e seu quimono branco agora era enfeitado por vários desenhos de sakuras...

Ela deve ter perguntado algo sobre eu ser mudo, pois respondi (respondi mesmo?) que “não, estou apenas perdido”. Presenteou-me com o sorriso mais gentil do mundo e se aproximou correndo suavemente, os pés pequenos, nus, esmagando pétalas pelo caminho enquanto o cabelo esvoaçava atrás de si.

Desejei imensamente abraçá-la.

— Achei seu coração! — exclamava alegre, mostrando para mim um pequeno buquê feito de (ÁS DE ESPADAS RISONHO) sakuras. — Achei-o dentro do armário e era tão bonito que pensei em comê-lo, mas aí resolvi dá-lo pra você! Pegue!

Limitei-me a balançar a cabeça para os lados, estendendo sim a mão, porém apenas para tocar em seu belo rosto moreno.

— Pode ficar pra você.

— Jura?

— Sim.

Ela riu envergonhada e então se aproximou repentinamente como na primeira vez, depositando um beijo simples na minha bochecha.

— Obrigado, menino bonito! — agradeceu enquanto corria pra longe de mim, agarrada ao pequeno buquê como se sua vida dependesse dele.

Demorei alguns instantes para perceber que ela estava indo embora e que provavelmente eu nunca mais a veria se deixasse tal acontecer. Reunindo toda a força que tinha, comecei a correr, desesperado para que o velho machucado na minha perna esquerda, fruto de um tombo na escada, não começasse a doer de repente.

A garota era rápida. Os sakuras não paravam de cair das árvores enquanto nossa perseguição prosseguia. Eu desejava ter novamente minhas pernas de sapo para, quem sabe, pular atrás dela e finalmente detê-la.

Estava sendo deixado para trás.

Cada vez mais... mais longe.

Caí, os músculos da maldita perna esquerda parecendo serem comprimidos um contra o outro: câimbra. Câimbra dos infernos, pra ser sincero.

Esperei durante uma eternidade, os olhos fechados (e os sakuras pulsando em seu tom magnífico de rosa por detrás das pálpebras), aguardando que a dor passasse.

— Já cansou? — sobressaltei-me ao notar a menina debruçada sobre mim, alguns de seus cabelos escuros e macios roçando em meu rosto. Estava na direção oposta que eu.

— Acho que sim.

Ela tocou a ponta do meu nariz e sussurrou:

— Não faz mal, podemos brincar amanhã!

— Estou crescidinho demais pra brincar — resmunguei tendo certeza que ele não era muito diferente da maioria dos indivíduos de gênero feminino que eu havia conhecido ao longo da vida: estranha, enganadora e infantil.

— Ah, você é tão reclamão, senpai!

Franzi a testa: tinha certeza que já ouvira aquele apelido uma vez... Mas onde? Quem me chamava daquele jeito?

Com a mente divagando sobre aquela questão, nem percebi quando seus lábios pousaram sobre os meus da mesma forma a brisa esbarra de vez em quando na pele. Tive a impressão que o mundo girava num turbilhão de pétalas rosadas e então a verdade me atingiu, um peteleco na orelha que despertou minha consciência:

Aquilo era apenas um sonho.

Deve existir alguma regra específica para isso (ou não), mas acredito que você não pode permanecer quando descobre que tudo aquilo que está vivendo não é de verdade. Algum mecanismo se ativa, como se você tivesse ultrapassado o limite aceitável. É quase o que acontece com os suicidas: eles descobrem que vivem uma grande mentira e aí resolvem acabar com tudo. Não é nada mais do que isso.

“Desculpe amigo, acaba de ser barrado desse sonho”, dizem, antes de te jogarem na sua cama e você levantar ofegante, procurando por todo o quarto (que por pouco não está um verdadeiro breu) pelo caderno e caneta que vão te salvar.

Então — sem os óculos, você não tem tempo, os sonhos desaparecem em menos de 3 minutos da nossa cabeça, portanto mesmo que você esteja enxergando tão bem quanto uma toupeira vai ter que continuar — começa a escrever. Escrever furiosamente, tão rápido que quase rasga a folha enquanto as palavras se formam, garrancho por garrancho.

Não escrevia frases complexas, apenas simples palavras-chaves que depois conseguiria ligar ou menos tentar fazê-lo.

“Sapo, caminho, universo, vidro, caco, dominó, grito, cair, cair, cair, garota, irmã, dezenove, Stephen King, rosa, sakura, sangue, degolar, beijo, sakura, olhos, quimono, correr, correr, correr, beijo, sakura, dor, muita dor, SAKURA...”

Bem, foi mais ou menos isso. Claro, haviam outras coisas sem sentido, do tipo “balanço cantante” ou então “ás de espadas risonho”, mas não compreendia muito bem o que elas faziam ali.

— O que você está fazendo aí?

Sobressaltei-me ao sentir uma mão macia pousar em meu braço e demorou para que percebesse que não estava mais sonhando, pois o indivíduo atrás de mim era idêntico a garota de quimono, mesmo que as trevas do cômodo borrassem um pouco suas feições.

— Acabei de ter um sonho muito maluco.

— Um pesadelo?

— Eu não sei. — se não podemos dizer qual pessoa é boa ou má, como fazer tal com os sonhos? Os sonhos dependem das pessoas para existirem e as pessoas são boas e más ao mesmo tempo...

— São cinco e meia da manhã.

— Sério?

— Que horas você foi dormir?

— Quatro horas.

— Meu Deus, você precisa ir ao médico dar um jeito nessa insônia!

— É, tá bem — um breve suspiro se fez ouvir: tinha toda a certeza do mundo que eu não iria ao médico nem que me arrastassem.

— Deita mais um pouco.

— Pra quê? Vamos ter de levantar daqui a pouco mesmo!

— Eu não quero levantar agora, ainda está escuro!

— Horário de verão, né?

Seu braço me envolveu pela cintura e ele tornou a deitar, pressionando o peito contra minhas costas. Resolvi deixar o caderno próximo ao pé da cama.

— Só mais uns minutinhos, por favor!

— Você é tão chorão que nem tem como negar.

Deitando de lado, senti o aperto em torno de meu corpo aumentar e a respiração quente roçava em minha nuca com suavidade.

— Ei, espera! — falei com um tom meio urgente.

Ele rapidamente se sentou, ligando o abajur.

— O que foi?

Juntei nossos lábios por alguns segundos e em seguida, com um sorriso no rosto, tornei a deitar. Ele me acompanhou, encaixando suas pernas nas minhas.

— Agora sim.

Antes de tentar descansar mais um pouco, meus olhos bateram em algo caído no chão e me inclinei na sua direção, tentando descobrir do que se tratava mesmo que sem os óculos a coisa não passasse de um borrão.

— Amor? — um dedo deslizou por meu maxilar: sinal de preocupação.

— Não é nada. Vamos! — desliguei o abajur e tornei a puxá-lo para mim.

Nas trevas, o borrão sumiu.

Ele era rosa.

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