segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O Canto da Lua Cheia - Parte V

— Seu Antonio... — chamou a jovem delicadamente.

O homem de aparência rústica e acabada não a encarou, apenas emitiu um grunhido de que estava escutando.

— Não vamos precisar machucar o Tomas, não é? Quer dizer, ele só parece um pouco alterado...

— Claro, claro! — afirmou impaciente. Agora era ele quem segurava a espingarda de caça que Mia trouxera junto consigo. Provavelmente seria melhor do que um revólver de garantia duvidosa. — Não vou machucá-lo, eu juro.

— Obrigada por me ajudar, seu Antônio. Eu realmente não sabia o que...

— Silêncio. — ele parou de andar e apertou mais a espingarda nas mãos.

— O que foi? Ouviu alguma coisa?

— Não. — ele destravou a arma e voltou a andar. — Mas é isso o que eles querem.

— Eles quem?

Antonio não respondeu. Adentrou mais a mata, sendo seguido de perto pela garota loira e amedrontada, que agora se perguntava se fora correto entregar a espingarda nas mãos daquele sujeito.

__***__

— Tudo pronto? — Pedro quis saber.

Os integrantes da gang acenaram positivamente com a cabeça.

Cristal e Tina já metamorfoseadas esperavam cada uma de um lado do corpo de Tomas, que fora colocado em cima de uma mesa tirada da perua. Tina, apesar de mais velha, era um pouco menor que Cristal e seu pêlo era avermelhado ao invés de alaranjado. Seus cascos batiam nervosamente no chão, trotando sem sair do lugar.

Will olhou para o céu. Lá em cima, a Lua Cheia começava a passar por sua própria metamorfose. Uma tênue linha vermelha começava a girar em círculos ao redor dela como se fosse um anel, então a preenchia por inteiro e quando menos se esperava, lá estava ela, a famosa Lua dos Malditos. As irmãs corsas batiam mais nervosamente ainda seus cascos, até que a mesa começou a tremer, o corpo atado de Tom sacudindo-se de forma violenta.

A canção começara. Todos eles podiam ouvi-la. Podiam senti-la subir e descer, rodar e girar como a melhor bailarina do mundo, uma pirueta pra lá e um salto pra cá, “venham, vamos nos divertir essa noite! Vamos...”

POW!

Neo caiu no chão com sangue jorrando do ombro. Ouviu-se um rugido feroz por parte de Gaby, que rasgou as roupas e logo caiu de quatro, metamorfoseando-se num lobo cinzento e de olhar assassino.

O lobo saltou para cima da garganta de Antonio e esse foi o momento em que a real confusão começou.

__***__

O homem atingiu-o com o cabo da espingarda três vezes na cabeça antes que ele caísse semi-consciente no chão com uma fratura no crânio que certamente deixaria marca caso ele sobrevivesse (mas não sobreviveu, não deixarei que nutram falsas esperanças).

Tina agitou-se e Cristal emitiu um som gutural que certamente nenhum herbívoro comum jamais emitiria, mas nenhuma das duas se moveu do lado de Tom. Afinal de contas, alguém precisaria estar lá para soltá-lo...

Jonas grunhiu e atirou-se, ainda humano, contra o pai, lutando para arrancar a arma de suas mãos.

— Seu filho-da-puta! — berrou socando o nariz do velho com força suficiente para fazer sangue jorrar e o próprio afundar no rosto. — Eu vou te matar!

O segundo soco fez Antonio largar a espingarda no chão e cambalear de encontro uma árvore, ainda sendo atingido pelo filho.

— Jonas, não! — Pedro lutou para arrancar o rapaz de cima dele antes que o matasse realmente. — Ele faz parte do ritual do Tomas, porra! Ou você quer que a gente coloque aquela garota ali no lugar dele?! — e apontou para Mia, jogada no chão com um olhar aterrorizado, visivelmente em choque.

— O que você está fazendo aqui, Melinda?!

— E-eu... eu queria a-ajudar o Tom! — lágrimas gordas escorriam por suas bochechas avermelhadas — Meu Deus... eu juro que não sabia que ele ia atirar, senão não teria dado a espingarda...

— Sua idiota!

Jonas avançou com a mão erguida, mas dessa vez foi Will quem o impediu.

— Já vai começar, Jon.

Os cinco encararam Tomas amarrado na mesa sofrendo convulsões tão fortes quanto um homem que começa a ter um ataque epilético, mas visivelmente não era nada disso. Porque homens sofrendo ataques epiléticos não começam a urrar daquele jeito, como se tivessem colocado fogo em seus corpos. Tom berrava tanto que Mia achou que ele fosse perder a voz. Os desenhos tribais que haviam sido desenhados em seu corpo brilhavam como brasas e foram absorvidos lentamente pela pele. Todo o lugar agora era iluminado por uma luz vermelha. Erguendo o rosto, a garota percebeu que a luz vinha da Lua Cheia.

Cânticos proibidos soavam nas vozes de um milhão de condenados às maldições, porque na Lua dos Malditos todos eles sentam-se onde possam contemplar sua amante e cantam. Cantam com toda força que seus pulmões possuem e sejam eles ricos ou mendigos, todos sabem de cor a letra, que não ousarei repetir aqui, pois ela enlouquece aos humanos.

Antonio foi mais rápido: ele arrancou tufos de algodão da camisa e enfiou-os nos ouvidos até todo o som não passar de um leve zumbido. Mia não teve a mesma sorte. Ela cobriu as orelhas com as mãos, porém havia três Malditos bem ali do seu lado e eles próprios gritavam a canção então não havia como escapar. Ela ouviu coisas terríveis, coisas sobre como o sangue alimentava a terra e menininhas pequenas de dentes podres. Ouviu sobre como os hipócritas, os caluniadores, os assassinos, os pedófilos, todos são libertados na Lua dos Malditos. Um homem tentou estuprar a garotinha de dentes podres, mas acabou tendo o pênis decepado pelos tais dentes. Uma mulher arrancou a própria cria de dentro de si e bebeu do recém-nascido seu sangue, enquanto o cordão umbilical ainda os unia. Isso, entre outras coisas foram escutadas... Mas, é claro, atrevo-me apenas a repetir as partes mais leves da canção para não causar grandes danos à sua pobre cabecinha.

Quando acabou, Tomas parou de se contorcer. Tina e Cristal puseram-se nas patas traseiras e destruíram as amarras que o prendiam. Ele sentou-se lentamente e com um sorriso rasgado que subia de orelha a orelha, arrancou o próprio cabelo como uma peruca e jogou-o no chão. Ali debaixo, onde devia ser o couro cabeludo, veias projetadas pulsavam e se contorciam como vermes por debaixo da pele. O azul de seus olhos foi ganham um tom tão claro até que virou branco e as próprias pupilas desapareceram. As gengivas parecem aumentar de tamanho junto com os dentes que agora mal cabiam na boca.

A coisa (pois aquele não era nosso menino Tomas) caiu de quatro da mesa e o som de seus ossos quebrando e reconstituindo-se pôde ser ouvido. Ela rugiu ao farejar o ar e começou a correr descontrolada na direção de Jonas e Pedro. Eles afastaram-se ao mesmo tempo, dando espaço para que ela atacasse Antonio, porém o velho não estava mais lá. A coisa então saltou para o pescoço daquele que fora seu irmão e quebrou-o.

— TOM, NÃO!

Will atirou-se na criatura metamorfoseado em pantera e atingiu-lhe os olhos completamente brancos. A coisa escancarou a bocarra, deixando um hálito fétido e baba amarelada saírem.

— TINA! CRISTAL! VENHAM AJUDAR, PORRA! — Pedro falava. Ele começara a procurar pelo velho Antonio quando sentiu um forte estampido na orelha e ao olhar pra baixo sentiu o estômago se revirar: sangue jorrava de sua coxa. Na certa havia atingido a artéria femural. Ele caiu por sobre a perna machucada com um grito de dor, mas esta não durou muito, pois o velho recarregou a arma e acertou-lhe na cabeça.

Mia ficara jogada de encontro uma árvore com os olhos embaçados e ninguém parecia lembrar-se dela.

Antonio conseguiu recarregar a arma há tempo de atirar no peito de Cristal, que não parou de correr na sua direção, emitindo aquele som perverso que apenas um herbívoro demoníaco poderia fazer. Suas patas acertaram o próprio peito do homem com fúria, quebrando várias de suas costelas. Quando ele caiu no chão, ela tornou a erguer-se sobre duas patas e ia esmagar-lhe a cabeça no exato momento que a irmã a atingiu por trás e a fez bater de cara numa árvore.

Ela não podia matar o velho.

O velho era de Tomas.

E este (ou A Coisa), após dar um golpe tão violento em seu adversário pantera que o fez cair desacordado, correu na direção em que o velho estava com sangue e ossos projetando-se sobre a pele enrugada.

Cristal tentou levantar-se, porém A Coisa a impediu, trespassando seu peito com uma garra poderosa. Antes de morrer, ela ainda pode ouvi-la rugir loucamente. Eu diria que o som foi quase uma gargalhada.

Tina, apesar de louca de cólera, foi esperta o suficiente para sair correndo de lá antes que A Coisa voltasse sua fúria homicida para ela. Restavam então o velho e a garota. Primeiro, esquartejaria o velho e comeria suas vísceras. Afinal de contas, não sabia ele (ou aquilo) que a carne humana ajudava a fortalecer seu corpo, principalmente quando consumida na Lua Cheia, na Lua dos Malditos? Depois, poderia divertir-se à vontade com a humana...

— Ei! — disse uma voz apática. A Coisa voltou-se para ela e deu de cara com a garota loira segurando um revólver apontado na sua direção. Os olhos estavam vazios e inexpressivos. — Saco de merda.

A Coisa berrou alguma praga em sua língua monstruosa e preparou-se para matar a humana insolente quando o som de seis explosões ensurdecedoras foi ouvido.

O revólver não falhara uma única vez e Mia atingira seu alvo com perfeição.

A criatura olhou para o sangue jorrando de seu peito e um som semelhante à um lamento escapou-lhe da garganta. Então caiu de cara na terra vermelha e dali não se levantou. Mas seria mentira dizer que nunca mais se levantou...

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