segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O Canto da Lua Cheia - O Fim

— O que o senhor acha que é essa coisa? — falou um dos policiais para o detetive, apontando para um cadáver perturbador coberto por um plástico.

— Sei lá! Mas sei que não vamos levar isso aí pro IML. Os outros sim, mas isso aí não.

— Mas senhor Teixeira, não é melhor que os peritos deem uma olhada nesse bicho?

— Não. Deve ser algum bicho deformado, talvez uma onça nascida com algum defeito genético.

— Certo. Puxa, mas eu nunca vi tantos corpos de uma vez nessa região!

— Pois é, os tempos mudaram, Souza. E aquela garota que encontraram aqui?

— Acho que não tem como salvar não, Seu Teixeira. A pobrezinha ficou pinel.

— Tão jovem... Isso não é justo. Onde esse mundo vai parar, eu me pergunto.

Os tiras foram embora carregando o corpo de todos (ou quase todos) os integrantes da gang (a transformação não permanece após a morte de um Maldito Transmorfo) e do pai cretino que tentara matar os próprios filhos, assim como uma menina loira que aparentemente haver sofrido traumas psicológicos tão sérios que não estava nem em condições de falar — e provavelmente não falaria nunca mais.

Aquela havia sido uma denúncia anônima e tanto!

__***__

Um ser estranho saiu de dentro da mata minutos após a partida da polícia. Usava um longo camisolão branco que parecia uma daquelas roupas de dormir de criança dos tempos da vovó. Apesar disso, suas botas tinham pregos na sola, o tipo de coturno do exército e seu rosto não exibia traços infantis.

A cabeça e as sobrancelhas haviam sido raspadas. Por debaixo dos olhos escuros, haviam olheiras monstruosamente grandes.

O ser estranho deu uma pisada violenta no estômago da Coisa que fora coberta por um plástico simples pelos tiras que não eram sangue-frio para que estes não colocassem o café-da-manhã pra fora. A criatura moveu-se automaticamente para frente agarrando a própria barriga e emitindo um som sufocado de dor. Ela começou a tossir e cuspir sangue.

— Eu sabia que não estava morto. — comentou em voz baixa o ser estranho, que não se podia dizer ser homem ou mulher por causa de uma imparcialidade estranha em suas feições e o próprio camisolão que usava tornava difícil tal identificação. — Eles nunca estão mortos...

Miserável... — A Coisa falou com uma voz de serpente, surpreendendo a si mesma. — Vou te matar...

— Não, você não vai, Tomas.

Eu não sou o menino. Não mais.

— E quem é você agora?

Não lhe interessa, miserável. Vou te matar e seu sangue me dará forças para...

Um chute atingiu em cheio a cara deformada da Coisa.

— Você fala demais pra um monstro. Fala demais pra ser um de nós.

E quem são vocês?

Eu sou Sara — falou como se aquilo respondesse qualquer questão do mundo. E, por ora, respondia mesmo. — E você não é Tomas, certo?

Exato...

— Claro que não é mais, Tomas. Agora você é Sara.

O que? Está delirando, humano?

— Não. Mas em breve vou estar. Rapazes, podem vir!

Um grupo de homens (se é que podia chamar assim aqueles indivíduos risonhos e com cavidades negras ao invés de olhos no rosto...) vestido de enfermeiros saltou de dentro da mata e agarrou a criatura por braços e pernas, começando a tirá-la dali.

O ser estranho permaneceu parado com suas botas militares, escutando os silvos desesperados da Coisa sendo arrastada para dentro da minivan e, em breve, (o ser estranho sabia) a Coisa seria como todos os outros daquele lugar. Seria Sara.

Tirou um cigarro de dentro do bolso do camisolão — uma pequena recompensa por ter rastreado a Coisa. Acendeu-o e começou a seguir para onde os “enfermeiros” (eles também eram Sara, só que com mais regalias) haviam arrastado a criatura que um dia fora um rapaz chamado Tomas.

Era sempre assim. No começo, você tem um nome, uma personalidade, uma família... Então, eles chegam. E te levam. E aí você passa a ser Sara. Porque Sara é igual a todo mundo. Ninguém pode ser diferente. Você precisa ser Sara. O Sara de quem Sara mais gostava era um rapaz negro e magro como um vara-pau. Ele havia lhe contado a história do garoto Tomas. Era cego, mas sabia a história de cada Sara que viria parar ali futuramente. Sara tinha medo dele. Tinha medo da canção que ele a fizera decorar (pois sabia do poder místico que cada música tinha, principalmente aquelas que nos são ensinadas na infância). Mas ele lhe dissera que tinha de cantar a canção para o garoto Tomas, pois essa era a única forma de ele ainda ter alguma chance.

“Chega de desculpas, Sara! Vá logo até a despensa enquanto aqueles malditos “enfermeiros” não vêm aqui te dar a droga do remédio...”, Sara havia dito. E Sara fizera o que Sara mandara que fizesse.

Havia pego um catálogo velho e havia lido toda a porcaria da música até gravá-la, até saber tão bem (ou talvez melhor) que o próprio cantor.

Jogou o cigarro fora quando chegou na minivan e os “enfermeiros” prenderam A Coisa ali, exatamente como haviam feito com a “bússola” — no caso, Sara.

Sara olhou para a Coisa amordaçada e presa.

— Você ainda tem chance, sabe? — sussurrou, mas a criatura apenas debateu-se. O encanto que havia lançado para que um pouco de sua racionalidade viesse à tona estava se desfazendo. Em breve não passaria de um animal outra vez. — Muito bem... — aqui suspirou — Melhor começar logo. A propósito... lembra quando estava na cozinha e lembrou do ártico?

A Coisa emitiu um som molhado, engasgado e Sara viu quando seu focinho forçou a focinheira, mas ela era resistente e não quebraria (para sua sorte). As garras dela permaneciam firmemente presas por algemas de prata que cintilavam e que, visivelmente, estavam fazendo mal a sua pele, pois uma fumaça negra subia da pele manchada e peluda do ser estranho.

— Bem, você certamente estava pensando no mesmo que eu. Só que eu pensava em “Sonata Arctica”. É o nome da banda que toca essa música. Sua música, Tommy.

Limpando a garganta, Sara começou com sua voz heterogênea, única, uma mistura perfeita entre o feminino e o masculino (um tenor excepcional seria caso se dedicasse à música):

Sitting on a corner all alone

Staring from the bottom of his soul

Watching the night come in from the window, window

A criatura parou de mexer-se e ficou escutando atentamente cada palavra que era pronunciada com a cabeça inclinada, como se as imagens da história que a música lhe falava estivesse infiltrando-se em sua mente deformada.

“Você precisa fazê-lo lembrar, Sara... Precisa fazê-lo lembrar-se de quem sempre foi...”

Itll all collapse tonight, the fullmoon is here again

In sickness and in health, understanding so demanding

It has no name, there’s one for every season

Makes him insane to know

“Se ele não lembrar, Sara… Bem, você ao menos vai ter tentado.”

Running away from it all

“I’ll be safe in the cornfields”, he thinks

Hunted by his own

Again he feels the moon rising on the sky

Find a barn wich to sleep in, but can’t he hide anymore

Someone’s at the door, understanding too demanding

Can this be wrong, it’s love that is not ending

Makes him insane to know…

She should not lock the open door

(Run away, run away, run away)

Fullmoon is on the sky and he’s not a man anymore

Sees the change in him but can’t

(Run away, run away, run away)

See what became out for her man…

Fullmoon!

“Eu preciso conseguir…”, pensava enquanto as palavras formavam-se em sua boca e saíam de seus lábios com extrema eficiência. “Preciso conseguir por Sara... Eu amo Sara...”

Swimming across the bay

The night is gray, so calm today

She doesn’t wanna wait

“We’ve gotta make the love complete tonight!”

In the mist of morning, he cannot fight anymore

Hundred moons or more, he’s bun howling…

Knock on the door, and scream that is soon ending

Mess on the floor again…

Sara tornou a repetir o refrão da música e imaginou que a criatura talvez tivesse adormecido, mas seria mentira poder afirmar com toda certeza, pois os olhos desprovidos de íris ou pupilas encontravam-se fixos em seu rosto, a focinheira apontada na sua direção como um cano de revólver dilatado.

She should not lock the open door

(Run away, run away, run away)

Fullmoon is on the sky and he’s not a man anymore

Sees the change in him but can’t

(Run away, run away, run away)

See what became out of her darling man…

“Agora vem a guitarra”, pensava com o maço de cigarros no bolso de seu camisolão. “Vem aquele solo maluco de guitarra, aquele solo parece que vai estourar a minha cabeça... Me pergunto como é possível que alguém consiga tocar tantos acordes ao mesmo tempo quanto aquele cara...”

She should not lock the open door

(Run away, run away, run away)

Fullmoon is on the sky and he’s not a man anymore…

See what became out of her man!

E o silêncio estabeleceu seu império quando a música terminou.

Sim, aquela música era quase que escrita para o garoto que um dia aquela Coisa havia sido.

“Ou quem sabe não foi essa história toda quem foi escrita para essa música?... Sara é sempre tão estranho quanto ao destino dos outros...”

— Você lembra, Tomas? Diga que lembra... — falava tirando a focinheira com delicadeza e durante uma eternidade esperou uma resposta.

Finalmente, a Coisa abriu a boca lentamente...

...e abocanhou seu braço furiosamente, não arrancando-o do corpo em que estava preso por pouco, pois os “enfermeiros” chegaram com seus sorrisos demoníacos e arrastaram a Coisa pra longe.

Agarrando o braço mastigado, Sara observou os ferimentos pararem de sangrar e começarem a fechar. Então, ficaram apenas cicatrizes, mas estas também sumiram em pouco tempo. Com um breve resfolegar, desceu da minivan, ainda segurando o braço quase recentemente esquartejado: Podia curar-se, é verdade, mas não gostava de sofrer ataques do mesmo modo.

Sara dirigiu-se ao jardim, onde sabia que haveria uma pessoa à sua espera.

__***__

O garoto negro regava lentamente rosas vermelhas como aquela que a fera tinha para marcar seu tempo como monstro. Sua cabeça e sobrancelhas também haviam sido raspadas.

— Sara? — Sara de camisolão chamou, o braço curado junto ao peito.

— Olá, Sara — cumprimentou o garoto negro virando-se com um vago sorriso nos lábios. Seus olhos, azuis foscos, eram cobertos por teias de catarata.

— Não deu certo.

— Eu imaginava que não daria.

— Mas então, por que...?

— A semente foi plantada, Sara. Só podemos aguardar que Ele escute nosso apelo.

Ele não existe, Sara.

— Não estou falando de Deus!

— Então está... Oh, compreendo.

— Sim... É Ele. Aquele que um dia nós, o exército, deveríamos enfrentar.

— Esse é o principal motivo para estarmos aqui, não é? — rindo-se, Sara de camisolão abraçou Sara negro. — Você é brilhante.

— Eu sei.

E antes que você reclame por uma história sem final, saiba que isso é apenas o começo...

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