terça-feira, 20 de abril de 2010

O Canto da Lua Cheia - Parte II

Aqui está a continuação da minha primeira história (deu pra reparar).
As coisas começam a ficar mais pesadas...


O Canto da Lua Cheia

Parte II

A Lua Cheia estava no céu e eu podia ouvi-la sussurrar em meu ouvido sensualmente, seus dedos etéreos traçando lentamente o contorno dos meus braços fortes e chegando até os botões da camisa xadrez azul e preta que estava usando. Era como ter a melhor puta do mundo oferecendo uma transa de graça. E eu estaria disposto a aceitar não fosse...
(a Garota? Onde está a Garota, querido? Ela não quer você, não como eu quero, ela não passa de uma vaquinha nojenta que te desprezou, por que você...)
...as contas que eu ainda tinha de acertar com o meu pai. E também o ritual de passagem.
Sendo assim, afastei aquela deusa sombria e desejosa de perto de mim. Desculpe, garota, sabe como é, problemas. Mas não pense que esqueci de você. Eu não esqueci.
(Oh, sim, querido, eu sei que não se esqueceu de mim)
Ótimo. Ótimo...
***
O médico havia constatado que minha mãe não sofrera um traumatismo craniano por muito pouco. Se o ângulo tivesse sido mais preciso e a força fosse um pouco maior... Eu finalmente encontraria utilidade para aquele terno velho e com cheiro de naftalina que um dia pertencera ao meu avô e que ganhara dos meus pais ao completar 16 anos.
— Você tem 19 anos, não é mesmo, Tom? — questionou gentilmente o doutor Hellen enquanto guardava o estetoscópio em sua maleta de couro preto.
— Sim, senhor. — respondi sem tirar os olhos de minha mãe. Com aquela faixa grossa de gaze cobrindo-lhe a cabeça e os cabelos escuros como um chapéu de maluco, era difícil reconhecer a mulher séria e determinada que sempre fora. Não parecia nem mesmo humana depois de ter adquirido aquele tom de pele arroxeado e um tique-nervoso inquietante de ficar revirando os olhos. Mas o doutor Hellen garantia que ela estava bem, que aquilo era coisa do momento... O jeito era esperar para ver.
— Júlio me disse que vocês são da mesma turma — ele continuou e eu comecei a levá-lo até a porta.
— Pois é, senhor. Sou repetente. Por duas vezes.
— Não consigo acreditar nisso, sabe? Você é um rapaz tão brilhante... — e os olhos dele moveram-se inconscientemente pelo meu peito coberto apenas pela camisa preta e sem mangas que eu geralmente usava para dormir.
O doutor nunca enganara a mim com seu jeito atencioso com crianças. Claro, ele não era o tipo de pedófilo que saía por aí levantando as saias das menininhas no parque (até por que ele preferia uns garotinhos suados a menininhas comportadas), mas eu não duvidava que quando a esposa e o filho iam dormir ele ia para o computador em busca de fotos com crianças em poses pouco inocentes. Provavelmente também se masturbava com aquilo, mas enfim, o que se pode fazer?...
Se bem que eu não sabia se podia considerar o fato dele querer passar a mão em mim, maior de idade, um ato digno de pedófilos. Pederastia, no máximo. Certo, qualquer que fosse o nome, eu não era muito chegado em um peixe-espada, se é que me entendem...
— Eu tinha muita dificuldade para me concentrar, senhor. Déficit de atenção.
— Oh, entendo, entendo... Então, acho melhor eu ir... — eu abri a porta e Jon chegou, suado e com o cabelo tão escuro quanto o meu (só que curto e arrepiado) com várias folhas de trigo presas nele.
— O senhor já vai? — ele falou, e eu ainda pude notar resquícios daquele ser obscuro que surgira em seu corpo poucos instantes atrás.
Para o doutor estava tudo bem. Claro, os humanos nunca percebem. Sua tolice sempre acaba poupando-os do pior no final...
— Sim, já é tarde e ouvi o delegado dizendo que algum bicho anda rondando as estradas de noite.
— Bicho? — Tom e eu trocamos olhares discretos e ele fingiu desinteresse. — Que tipo de bicho?
— Pra ser sincero não sei, Jonas. O delegado acredita que pode ter sido mais de um, talvez os tigres asiáticos que fugiram de um circo que passava perto daqui, mas mesmo que não sejam eles, matou um grupo de 8 homens que acampava na floresta.
— Isso é horrível.
O doutor concordou com a cabeça e foi para a varanda, colocando o antiquado chapéu de vaqueiro ao começar a descer as escadas. O bigode grande mexia-se nervosamente enquanto ele falava.
— Andei pensando em oferecer ajuda para caçar a besta. Vocês poderiam ajudar-nos também. Precisamos de homens jovens e fortes para algo assim – nós velhos não damos mais conta das coisas sem ajuda. — E ele riu espalhafatosamente, sendo acompanhado por eu e meu irmão de forma mais reservada.
— Claro! — respondi, porém no fundo pensava “Imagino para quê você precisa de homens jovens e fortes como nós dois... E é para dar conta de outra coisa, não de uma caçada...”. Desculpe, mas os pensamentos sombrios são inevitáveis agora. — Adeus, doutor.
— Adeus, rapazes. Que Deus os proteja.
Eu fechei a porta e olhei para meu irmão (geralmente exibindo um bronzeado invejável) que encontrava-se pálido e com os olhos negros de ódio. Ele tacou um pedaço de tecido branco no chão entre nós dois e cruzou os braços.
— O que isso significa? — perguntei lentamente, com um tom que certamente tinha algo de assassino.
Ele encolheu os ombros por um segundo, perturbado e respondeu:
— Significa, irmão, que nós estamos... como era mesmo a palavra?...
— “Fodidos”? — ofereci casualmente ao apanhar a blusa e cheirá-la por alguns instantes. Fiz uma careta; fedia. Oh, sim, fedia muito.
— Pra cacete, cara. — ele concordou e eu não neguei. Já na cozinha, sentamos à mesa e esperamos.
Cinco minutos mais tarde, Pedro e o pessoal da gang bateu na porta da frente.
***
Foi Jon quem abriu a porta para eles. Eu permaneci sentado, brincando com o tecido da blusa de nosso “querido papai” por entre os dedos.
— E aí, véi? Como é que a sua mãe tá? — quis saber Pedro dando um tapa amigável no meu ombro. Ele era um cara alto (não tanto quanto eu, mas alto do mesmo jeito), com cabelos loiro-escuros e óculos quadrados e pretos que lhe dariam um ar de nerd se a barba por fazer e os ombros largos que ele cobria com uma jaqueta de couro já não cumprissem o trabalho de fazê-lo parecer o tipo de cara que está envolvido com o tráfico de drogas ou a rede de prostituição.
— Está viva — respondi apaticamente. Exibi para ele e todo o pessoal do grupo que vinha logo atrás, espremendo-se naquele humilde cômodo da nossa casinha velha e ferrada, o pedaço de camisa rasgado. Depositei-o na mesa e todos ficaram encarando-o da mesma forma que um esquadrão anti-bomba encara um pacote suspeito na frente da Casa Branca. Depois de segundos que duraram uma eternidade, Will abriu espaço entre os rapazes para poder examiná-lo melhor. Ele era o especialista em rastrear as coisas, afinal.
Depois de observá-lo, cheirá-lo, tocá-lo e até lambê-lo, ele parou para meditar um pouco sobre como o quadro que se encontrava em cima da bancada, representando a vaca Celeste que tínhamos no sítio (antes de papai vendê-la) era impressionante apesar de ter sido pintado por mim aos seis anos de idade.
Finalmente, falou:
— Ele está exatos cinco quilômetros e meio daqui, invadindo a propriedade do velho Marv.
— Só isso? — Noe ria debochado, passando o indicador pelo bigodinho ruivo como se fosse um Don Juan paraguaio tentando lançar uma cantada velha na garota mais gostosa do baile. — É moleza pegá-lo. Quer que eu faça isso, Querido Tomas?
— Não. E se me chamar de “Querido Tomas” de novo eu juro que arranco o seu bigode com a cera quente que a sua mãe tem no salão.
— Tá certo, coisinha linda — ele disse erguendo as mãos em sinal de trégua. — Mas eu não tenho culpa se você é irresistível com seus frios olhos azuis acinzentados.
— Noe, quer parar de viadagem? — resmungou Gaby, apesar de todo mundo saber que ele às vezes gostava de levar uns tapinhas do Noe. — O assunto é sério.
— É sério mesmo. — Pedro sentou na cadeira ao lado da minha e me olhou com ar grave. — Cara, você tem certeza que não quer que o Noe vá atrás do seu pai?
Aposto que você deve estar se perguntando por que ele não se refere a mim e ao Jonas nesse momento, já que o pai é nosso. Em breve, explicarei.
— Absoluta. Deixem-no correr o mais distante que puder...
— Na verdade — Will interrompeu, ajeitando seu boné na cabeça — ele vai dar mais uns cem passos antes de cair no meio da plantação de tomates, desmaiado de tão bêbado.
— Tanto faz. Deixem-no. Ele fará parte do ritual na sexta.
Pela primeira vez em anos, a paz que eu tanto sonhava surgiu na minha casa. Só que ela não foi do jeito que eu esperava. Na verdade, parecia querer estrangular-me. Suspirando, pensei em como o mundo me detestava. Maravilhoso, o que eu faria depois? Pintaria meu quarto de preto e cortaria um dos pulsos? Será que isso me faria mais feliz?
— Tomas... — pela primeira vez Tina (desacompanhada de sua irmã mais nova Cristal, que estava doente com catapora) manifestou-se, aproximando-se de mim com cautela. — Ele é seu pai...
— Ele é um cretino! — exclamei batendo com o punho na mesa, perdendo a paciência. — Ele é — as palavras saíam lentas, com o objetivo de chocar pela dureza — uma porra de um cretino. E nós vamos fazer o que eu estou dizendo — bati o punho novamente para ressaltar a frase. Não sei como não quebrei a mesa — estão entendendo?
Todos assentiram.
Por algum motivo, aquela conversa toda me lembrou do ártico...
***
Infelizmente, aquela era a última semana de provas, sendo assim eu não podia matar aula como tanto desejava. Suportei bravamente a tortura de ter de aguentar ver Mia conversando com seus amigos (que não gostavam muito de mim por que achavam que quando eu sorria parecia estar rosnando. No caso de Renan, um babaquinha que estava à fim dela, realmente eu estava rosnando) e não poder sequer chegar perto dela.
Vida de merda!
***
Na aula de Filosofia estávamos discutindo alguma coisa sobre Moral e Ética, mas eu realmente não estava prestando atenção. Rabiscar monstros deformados na carteira parecia muito mais interessante do que ouvir o professor. Tão distraído estava que quando uma mão pousou em meu ombro sobressaltei-me, quase caindo no chão. Olhei para trás, ansioso por ver os lindos olhos de minha amada (certo, ela me bateu e meu chamou de cretino quando eu disse que amava ela... Mas eu lá tenho culpa de não conseguir esquecê-la?!), no entanto quem viera falar comigo fora Will.
Como sempre estava usando uma de suas (milhares) camisas brancas e seu velho boné surrado que tinha um logotipo de propaganda de algum livro do André Vianco. Sentando-se do meu lado, ele passou para a minha mesa um bilhete. Abri e nele estava escrito, com uma caligrafia surpreendentemente bonita: “Você não está nada bem, cara. Posso te ajudar?”
Molhei a caneta na ponta da língua (um hábito que ainda me mataria um dia, pois dizem que a tinta das canetas é tóxica, ou algo do gênero) e demorei um segundo para pensar no que responder. Rapidamente, rabisquei uma resposta com minha letra feia de médico (você não sabe como eu tenho vergonha dela):
“Não, irmão. A menos que você saiba por que as mulheres são tão contraditórias, eu acho que não.”
Will deu uma risada baixa e tornou a responder.
“Cara, acho que nem elas sabem por que são assim.”
“Mas que maravilha!”, escrevi com um pouco de raiva e por isso as palavras saíram meio manchadas. “Então, infelizmente, mano, não vai dar.”
“Por acaso é a nerd que tá te deixando assim?”
“Ela não é nerd!”
“Pelo amor de Deus! Ela chorou quando tirou 99 na prova de física!”, olhei para Will e pude vê-lo mover os lábios sem produzir som. “Noventa e nove!”, foi o que li nos movimentos labiais dele.
“Certo, talvez ela seja um pouquinho nerd. E sim, é ela que está me deixando assim...”
“Pobre Tomas... Acaba de descobrir que o amor é duro, cara. O cupido é um imbecil que vive de azucrinar as nossas pobres vidinhas mortais...”.
Nem esperei ele terminar de escrever para mandar um pescotapa sonoro, chamando a atenção de quase metade da turma. Felizmente, Mia não fazia parte dessa metade. Pra ser sincero, ela parecia muito concentrada no Renan...
— Babaca — sussurrei pra ele e Will sorriu com seu sorriso Colgate, dando de ombros como se dissesse “Fazer o quê? Sou um poeta incompreendido...”.
***
Eu e o Will nos conhecemos faz uns três meses, que foi quando ele se mudou pra cá. Segundo o que seus pais afirmavam, o pai dele tinha sido promovido na empresa e resolveram mandá-lo para Cascata das Lágrimas (o nome da nossa cidade, e sim, eu sei, é muito alegre não acha?), para poder cuidar de uma das firmas.
— Mas não foi nada assim, mano — ele me contou enquanto fumava um cigarro Marlboro e mandava a fumaça pro céu escuro. Estávamos sentados nos degraus de sua casa e eu tinha acabado de recusar dividir o cigarro com ele (boxeadores não deviam fumar a menos que quisessem morrer com falta de ar no meio do ringue). — Uns filhos da puta do meu antigo colégio tentaram violentar a minha irmã... E depois falaram na delegacia que ela não passava de uma macaca com cabelo ruim, que eles nunca iam tentar nada com uma macaca. Meu pai virou um bicho, saca, irmão? Disse que ia processar os garotos, mas eles eram menores e o caso acabou indo parar na pilha de processos que aguardavam julgamento. Os caras então resolveram se vingar e picharam a nossa casa. — Will parou para rir, mas percebi quando ele enxugou uma lágrima de frustração que escorrera de seu olho direito — Pra você ter ideia, tinha até um símbolo nazista no meio da pichação. Nazista, cara!
— Deve ter sido barra, irmão. — comentei, lembrando-me de uma cena que eu vira em um vídeo numa de minhas aulas de Sociologia. Holocausto. Os corpos magros de negros e judeus sendo atirados de cima de uma ribanceira. Fechei os olhos e pela primeira vez na vida desejei ter um cigarro pra acalmar aquele estresse que começava a martelar na minha têmpora esquerda. — Então vocês vieram pra cá, não é?
— Isso aí. Mas vê se não conta o que eu te falei pra mais ninguém, tá ligado? Eu te contei por que confio em você...
Confio em você...
Era impressão minha ou nos últimos meses eu estava tendo sorte em fazer amigos? Bom, ao menos pra mim, fazer dois amigos no período de um ano era muita sorte.
— Não vou contar pra ninguém, cara. Eu juro.
Bati na mão dele e continuamos sentados ali até que a mãe de Will mandasse ele parar de fumar e chamasse nós dois para dentro, pois o jantar estava pronto.
***
O Will, como todo mundo que estava na minha cozinha na noite em que meu pai surtou, não era normal. Éramos todos Malditos. Malditos do gênero transmorfo e se você acha que isso é ruim, fique sabendo que eu não trocaria ser um Maldito Transmorfo por nenhum outro tipo (a menos, é claro, se fosse para ser uma pessoa como qualquer outra, perturbada e com raiva da vida).
Certo, na verdade, eu ainda não era oficialmente um Maldito. A coisa só seria oficializada no ritual de sexta, daqui há dois dias. Todos da gang estavam curiosos para saber qual Transmorfo eu me tornaria, e eu mesmo tinha de admitir que estava curioso, mas de forma menos ansiosa.
Se você não está entendendo, deixe-me explicar: ser um Transmorfo é ter o poder de mudar de forma, no nosso caso, mudar para a forma de um animal, geralmente mamífero... É quase como ser um lobisomem. Só que as diferenças são grandes. Nós não viramos necessariamente lobos. Na verdade, o único que virava lobo no grupo era o Gabriel (popularmente conhecido como Gaby). Outro que chegava perto disso era o Neo, que se transformava num pastor alemão imenso — por isso brincávamos dizendo que eles eram um casal perfeito. Também podíamos nos transformar em animais que não faziam parte da fauna brasileira, dependendo de nossos antepassados. Pedro, por exemplo, transformava-se num urso pardo e Will em uma pantera. E não precisavam ser animais carnívoros. Tina e Cristal eram frequentemente zoadas no grupo por virarem corsas — que tinham cascos bem pesados, a propósito.
O meu irmão virava uma raposa negra com dentes longos e um apetite voraz. Pra falar a verdade, todos os carnívoros têm apetites insaciáveis. E os herbívoros costumam ser bem violentos... Sim, você provavelmente pensou direito. A gang é a culpada pelos assassinatos. Todos tentam enxergá-los como acidentes, afinal de contas, de vez em quando, na Lua dos Malditos, pode-se perder o controle e deixar-se levar pelo instinto...
Entrei no jipe (o único carro que tínhamos) e comecei a dirigir para casa. As aulas tinham sido um saco e eu com toda certeza havia me ferrado na prova de Química. Só conseguia pensar no quanto eu tinha sido azarado...
Segundos as “regras genéticas dos transmorfos”, apenas transmorfos podem gerar herdeiros com a mesma “maldição” nos genes. Geralmente, entretanto, só um dos filhos é como o pai (ou a mãe) e costumam serem os primogênitos. Filhos não-transmorfos gerarem filhos transmorfos, mais de um filho nascer transmorfo e um transmorfo manifestar a maldição antes dos dezesseis anos são todos fatos anormais (quer dizer, o simples fato de uma pessoa transformar-se em animal é anormal, então coloquemos assim: na linha de raciocínio onde o “anormal” é julgado “normal” aquilo era anormal). E todos aconteceram com a nossa família.
Nosso pai era um não-transmorfo, no entanto Jonas e eu estamos aqui hoje, não é mesmo? Dois fatos de uma vez. O terceiro foi o pior... Oh, sim, acredite que foi.
***
Tínhamos uma irmãzinha chamada Juliana. Eu a chamava de “Nana” e vivia para protegê-la de tudo e todos. Nana tinha 9 anos e eu, catorze, quando ela resolveu que o jogo de Banco Imobiliário era muito chato e me bombardear com perguntas muito mais divertido.
— Tommy, — ela era a única pessoa que eu deixava falar desse jeito comigo — o que acontece depois que a gente morre? — perguntou enquanto movia sua pecinha vermelha duas casas.
— Pra quê você quer saber disso? — apanhei os dados e os atirei no meio do tabuleiro de papelão, xingando baixinho quando tive de parar numa das propriedades dela e pagar-lhe algum valor bem alto.
— A Cristine falou que o coelhinho dela morreu e foi pro Céu. É verdade?
Olhei pra ela com carinho. Éramos tão parecidos, não apenas fisicamente, mas também mentalmente. Mesmo com Jonas, apenas dois anos mais velho que eu, não conseguia encontrar sintonia como a que encontrava com ela.
— Olha só, Nana... — sentei mais perto dela, puxando-a para meu colo com delicadeza como sempre fazia quando estava prestes a explicar uma verdade delicada — Eu realmente não sei o que acontece depois que a gente morre.
— Então quer dizer que Deus não existe? — seus olhinhos azuis como os meus se espremeram de ceticismo, e eu ri, nervoso.
— Não foi isso o que eu disse, sua distorcedorazinha de palavras! É claro que Deus existe, e milagres também.
— Jura?
— Claro! Num mundo tão cheio de coisas feias e gente má, uma menininha tão maravilhosa quanto você é um grande milagre! — e eu pressionei a boca contra sua barriga emitindo um som alto, fazendo-a se contorcer e rir histericamente.
— Tommy! Pára, Tommy! — ela exclamava divertida.
— Ah, você quer que eu pare é, sua danadinha? — e eu tornei a repetir o ato, rindo.
Eu a amava.
Quando seu corpo foi encontrado nu e sujo de terra no meio da floresta, não tive vergonha de deixar-me cair de joelho e urrar feito um animal ferido na frente de todos os homens que a procuravam, inclusive meu pai, que sustentava um olhar culpado.
“Foi só um acidente”, quase podia ouvi-lo pensar. “Foi só um acidente...”
***
Nana manifestara uma transformação duas semanas após seu aniversário de onze anos. Lembro que na noite da festinha que fizemos para ela, como minha irmãzinha quase chorou quando eu lhe entreguei uma casa de boneca de madeira que fizera com as próprias mãos durante o ano inteiro, às escondidas.
— Que linda, Tommy! — gritou atirando-se no meu pescoço.
Então nos sentamos e comecei a lhe mostrar os diversos cômodos da casa de quatro andares, todos com os mínimos detalhes, dos móveis aos papéis de parede usados — cada um diferente do outro em cada aposento. Ela levantou de repente e apanhou dois bonequinhos simples que eu ensinara-a a fazer, um deles monstruosamente grande e branco, trajado completamente de preto (lembrou-me muito do Frankenstein, só faltavam os parafusos no pescoço), e o outro pequeno e delicado, usando um vestidinho azul. Colocou os dois de mãos dadas na frente da casa, no jardim de papel crepom verde e com flores de pano que eu costurara (com grande esforço, já que minhas mãos não estavam acostumadas com esse tipo de trabalho manual e acabei furando os dedos mais de uma vez pelo dedal ser pequeno demais para caber em mim).
— Esse é você — apontou para o boneco “Frankenstein” — e esta sou eu! — indicou a bonequinha que apelidei de “Chapeuzinho Azul”.
Duas semanas depois, eu encontraria a casa jogada de lado, próxima da plantação, metade dela completamente destruída. Os bonequinhos haviam tido suas cabeças arrancadas (decapitados... decapitados como os traidores na época da monarquia) e ao correr até o limite da fazendo encontrei manchas de sangue e lascas de madeira.
***
Naquele dia, meu pai havia ido caçar. Ele ainda não começara a beber.
Encontrou um filhote de lobo e atirou bem no peito dele. O filhote ainda conseguiu fugir e como estava quase anoitecendo, resolveu que não valia à pena ir atrás dele. Afinal de contas, no dia seguinte podia voltar e procurar pelo rastro de sangue, assim descobriria onde...
— Você viu a Nana? — perguntei nervoso quando ele chegou em casa. — Por favor, me diz que levou ela pra caçar com você! — Porém ao olhar para trás dele, esperançosamente tentando avistar uma criaturinha pequena e de cabelos pretos e lisos, vislumbrei o vazio. Um soluço de pânico escapou de meu peito.
— Como assim? — ele colocou a espingarda em cima da mesa, descarregada. — Ela estava brincando com a casa que você fez pra ela quando eu saí. — Rindo, meu pai foi para a cozinha, onde ainda de costas, falou comigo e não pôde ver os rostos aflitos e sérios de meu irmão e minha mãe. — Até parece que não conhece a Juliana, Tom! Ela jamais viria em uma caçada comi...
E as expressões em nossos rostos o fizeram ficar calado.
De madrugada, chamamos todos os vizinhos e varremos a mata atrás dela.
E achamos. Primeiro o vestido completamente arrebentado e depois...
O cadáver dela.
Deus, como eu preferia que não tivéssemos achado nunca... Mas será mesmo que eu aguentaria saber que seu corpo pequeno e frágil encontrava-se perdido na floresta, à mercê de animais carniceiros e caipiras necrófilos?
Não. Claro que não...
***
E foi simples assim, senhoras e senhores.
Tão simples que às vezes eu realmente duvido que tenha acontecido...
***
Cheguei em casa e estacionei o jipe, saltando dele e contornando-o sem pressa para apanhar a moto coberta por uma lona no celeiro. Eu decidira ir à cidade visitar o túmulo de Nana. Essa noite, a Lua subiria no céu e cantaria sua canção maldita, sendo assim eu queria ter certeza que minha alma estava em paz com as decisões tomadas até agora. Nada melhor do que visitar minha irmãzinha querida para tal.
— Tom! Tom! — olhei por cima do ombro e ali estava Mia, descendo desajeitada de sua enferrujada Caloi roxa. Aos tropeços alcançou-me e ficamos nos encarando enquanto ela recuperava o fôlego.
— Então? — e meu tom de voz saiu mais frio do que eu pretendia.
— Bom... eu... — ela começou ficando vermelha e olhou para os próprios pés. — Vim aqui me desculpar. Pelo que eu fiz.
— Sei... Não quer ter a consciência pesada quando começar a namorar com o Renan, não é? Consigo entender, sério mesmo. Eu te perdoo.
— O QUÊ?! Você acha que eu e... eu e Renan... — Mia balançava a cabeça com força, jogando os cabelos dourados para os lados. — Não, não! Ele é só meu amigo.
— Um amigo que está louco pra enfiar a língua na sua boca! — exclamei apertando os guidões da moto e passando a andar duro enquanto a levava até a estrada.
— Eu não gosto dele! — ela retrucou também gritando, segurando meu braço, fazendo-me parar, mas não por ter usado toda a sua força (que não era grande coisa comparada à minha), mas sim por que eu ainda era completamente apaixonado por ela. E os apaixonados têm uma mania idiota de sempre obedecer ao seu objeto de paixão como se fossem... cãezinhos domesticados.
— Então por que me deu um fora quando eu te disse que estava apaixonado? Por que você me bateu e me chamou de cretino? Por que ficou toda “agarradinha” — os apaixonados também têm uma péssima mania de aumentar as coisas. Um peido vira uma bomba atômica — com aquele retardado do...
— Eu te amo, merda! — ela berrou, e me surpreendi, não apenas por ter sido o primeiro palavrão que eu a ouvia falar, como pela força da revelação. — Como você queria que eu reagisse com você falando praticamente que eu era uma fútil que só gostava de caras tipo o Brad Pitt? V-v-você queria que eu ficasse numa boa? Eu sempre te amei e- e-e-estava assustada! Apavorada!
— Então... — um sorriso digno de um débil mental surgiu em meus lábios. — Você gosta mesmo de mim?
— O que é que eu estou falando? Você ficou surdo por acaso?! — ela atirou-se em meus braços chorando, procurando desesperadamente os meus lábios.
Tratei de beijá-la rapidamente, segurando-a pela nuca e pela cintura, enquanto ela arranhava meu peito por cima da camiseta do Iron Maiden. Ao constatar que sua boca tinha gosto de bala de menta, senti um arrepio subir pela espinha e estremeci de satisfação. Na verdade, eu estava quase caindo duro de satisfação no chão...
Mas eu não podia me esquecer de tudo só por que a garota da minha vida estava bem ali nos meus braços, não senhor.
A vida sempre acaba cobrando nossos erros nas horas mais inoportunas, como um chefe que tem terrível senso de humor sádico e que adora nos mandar fazer hora extra na noite de Natal, quando deveríamos estar com aqueles que amamos, rindo e sendo felizes.
Eu não podia ser feliz agora.
Talvez, o certo fosse falar que eu não poderia ser feliz nunca.
Parei de beijar Mia e encostei a testa na sua, mesmo sentindo dor nas costas por ter de me curvar tanto. Suspirando, comecei a soltá-la quando senti-a segurar-se em mim firmemente e sussurrar:
— Não, não vá.
— Eu preciso, Mia. — retruquei sem forças, sabendo que se ela insistisse muito mais eu acabaria caindo de joelhos aos seus pés e acatando seu desejo.
— Não, você não precisa. Pode ficar aqui comigo... Fique comigo, Tom.
Ela me encarava agora, segurando-me pelo pescoço. Vi como as lágrimas pareciam prestes a desabar e isso atingiu meu coração como um tiro de canhão.
Uma palavra: monstro.
— Não posso. S-sinto muito.
E soltei-a.
Voltei-me para a moto e continuei a levá-la para a estrada.
— Tom, por favor! — escutei-a implorar e recomeçar a chorar, correndo atrás de mim, tão frágil, tão perdida, tão... magoada. — Eu amo você! — ela murmurou com as unhas fincadas no meu braço. Não me importei. Eu precisava ser o homem de gelo agora.
(Mas você nunca foi um iceberg, querido? Sempre tão distante de tudo e de todos...)
— Mia, não tenho tempo pra isso agora. Preciso ir embora. Tenho coisas à fazer...
— Como assim “coisas”? Você surta por que acha que eu te desprezo, me dá um beijo de novela e depois diz que... tem coisas pra fazer? O que você pensa que está fazendo, Tomas?
Empurrei a moto com raiva (e vontade de descontar em alguma coisa) e ela caiu com estardalhaço na estradinha de concreto, o som de alguma coisa nela se quebrando e o do metal arrastando-se fazendo parte da trilha sonora da vez. Não raiva dela, daquela fadinha loira e minúscula. De mim, esse Frankenstein feio, sombrio, perturbado... Agarrei Mia pelos ombros e certamente, as lágrimas e a dor que ela viu nos meus olhos (e que eu pude contemplar refletidas nos olhos dela), a fez silenciar.
— Eu imploro, por favor, pare com isso. Eu te amo e não quero ir. Mas eu preciso ir. Faz parte do que eu sou, entenda! Não quero te machucar, não quero te matar, Mia. E com você me mandando ficar eu posso acabar aceitando, mesmo sabendo que quando a hora chegar eu vou te estraçalhar em um milhão de pedaços e talvez devorar, não sei, pode ser que eu deixe o seu corpo pros peritos da polícia, ou coisa parecida.
— Tom... — ela tocou meu rosto levemente e senti vontade de enfiar as unhas na minha própria face e desfigurá-la bem ali diante dela, para que talvez comigo tão deformado por fora quanto eu era por dentro, aquela garota pudesse entender o perigo que corria perto de mim. Um perigo que eu mesmo, de forma egoísta, quisera negar existir até noite passada.
— Mia, eu vou agora. Não vá atrás de mim. Fique aqui, tranque as portas e janelas, e não saia até que o sol amanheça, entendeu?
Não esperei que ela respondesse, apanhando logo a moto (que pelo visto sofrera alguns arranhões na lataria e tirando um espelho quebrado, não parecia tão mal quanto eu imaginava) e abrindo o compartimento no banco que eu usava para guardar o capacete e as luvas. Coloquei as luvas e fechei o zíper da minha jaqueta, hesitando na hora do capacete quando Mia falou:
— Tom, faça amor comigo.
Não ousei virar o rosto na sua direção, permanecendo concentrado em limpar o visor do capacete e ver se ele estava limpo por dentro também, sem nenhuma aranha ou escorpião para me surpreender.
— Não vá embora, sei que não vai me machucar. Você jamais faria mal à mim e sabe disso. Fique e faça amor comigo. Por favor, Tom, eu preciso de você...
Como eu queria que um escorpião me picasse naquela hora...
“Vai atender ao pedido dela, Tom meu velho? Por que não, hein? Largue essa porcaria aí na estrada mesmo, entre e leve ela até o seu quarto. Vamos, eu sei que você quer, sei que você necessita disso tanto quanto um homem no deserto necessita de água...”, sussurrou a voz do macho humano que ainda existia em meu interior. Ela era forte e difícil de ignorar. “Você também tem as suas necessidades afinal de contas, também deseja um pouquinho de prazer. Vamos, Tomas, um homem como você não pode sobreviver a vida inteira de revistinhas pornôs, não acha? A chance está bem aí na sua frente, oferecendo-se toda cheirosa e macia, e você pode...”
Não.
Eu não posso.
Seria mentira dizer que eu não imaginei como seria largar a minha Suzuki ali no meio da estrada, pegar Mia no colo e chegando no meu quarto, depositá-la na cama para amá-la o resto da tarde e a noite inteira, até que nossos corpos pedissem descanso e eu pudesse desfrutar de uma noite tranquila nos braços dela. Tão maravilhosa e quente... Eu sofrera a vida inteira com um mal estranho e misterioso que fazia com que grande parte do tempo eu tivesse a pele tão gelada quanto a de um homem colocado no meio da Antártida sem roupa nenhuma. Por acaso se estivéssemos juntos eu poderia sentir minha pele esquentar tanto quanto ela costumava esquentar no ringue, lutando um mano a mano? Seria tão bom assim ou...
Mas o chefe estava bem ali, me encarando, mandando que eu voltasse a sentar minha maldita bunda na cadeira por que naquela noite não haveria Natal pra mim — e muito menos uma noite de amor com a garota por quem eu daria a vida.
Por isso, eu simplesmente coloquei o capacete e acelerei, deixando-a para trás, com as chaves de casa nas mãos e lágrimas de infelicidade escorrendo pelo rosto delicado.
Uma constatação que me veio em mente enquanto acelerava ainda mais a moto — como se a velocidade pudesse levar embora todos os meus problemas, quando no fundo apenas poderia resultar em uma derrapagem feia e uma coluna quebrada — foi de que eu estava cada vez mais mergulhado na merda.


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O Canto da Lua Cheia - Parte II de Sara J. Treze é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-No Derivative Works 3.0 Brasil.
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